A GEOGRAFIA SAGRADA DO
MUNDO MÉDIO
Numa tarde do fim do outono, quando Roland, Alain e
Cuthbert ainda eram jovens o bastante para se entediarem com suas aulas,
Vannay, seu tutor de filosofia, lhes fez uma proposta. Se parassem de
bocejar, ele os levaria para passar o resto do dia ao ar livre. Quando
os garotos gritaram de alegria, Vannay os avisou de que não iam perder
a aula. Na verdade, era exatamente o contrario. Mas hoje o tema de estudos
era a geografia sagrada do Mundo Médio, e um tópico dessa natureza também
poderia ser ensinado tanto nos campos verdes de Gan quanto numa abafada
sala de aula.
Enquanto os garotos se ajeitavam à sombra de uma antiga bétula, Vannay,
grisalho e manco, ergueu a ponta de sua bengala e traçou um circulo
na terra. Enquanto os garotos olhavam o circulo,Vannay o transformou
num relógio, só que sem ponteiros, e, em vez de doze números ao redor
de seu perímetro, ele desenhou doze “xis”. No centro do circulo, Vannay
plantou sua bengala. Quando teve certeza de que o cajado ficaria em
pé sozinho, ele se curvou com dificuldade e, com certa ajuda dos garotos
também se sentou no chão com as pernas cruzadas. E começou.
A terra na qual eles viam – e na qual brincavam e tinham suas aulas – era chamada de Mundo Médio. Na Língua Superior, seu nome era Mid-Gard, ou Jardim do Meio. Nos séculos anteriores ao Grande Envenenamento, Mid-Gard havia sido um reino poderoso, que continuara a honrar os caminhos do Branco em um tempo de trevas. Quando o Povo Antigo se destruiu em sua ultima guerra de obliteração, Mid-Gard caiu, mas a lembrança do que aquele grande reino defendia continuava. Mid-Gard tornou-se o epíteto que os homens usavam quando queriam falar de uma terra pura – intocada por tocinas e mutações, e onde a justiça e a verdade eram mais poderosas que mentiras e engodos. Em pouco tempo ele se tornou o nome da própria Terra: uma terra devastada que os homens estavam lutando para transformar novamente num jardim.
Apontando para o seu mapa, Vannay contou aos garotos que o Mundo Médio era plano e redondo. Era cercado de água pro todos os lados – o Mar Ocidental, os Mares do Sul, o Mar Limpo e o frio Mar do Norte, que era coberto por uma camada de gelo. Na verdade, todos os mares eram um só. Além dos mares ficava a borda do mundo, e além do mundo ficava o Prim, o caldo mágico e primordial da criação. Além do Prim ficava o vácuo da escuridão de todash, que se estendia para o infinito.
Em seguida, Vannay bateu em cada um dos xis na periferia de seu mapa e perguntou aos garotos se eles sabiam o que aquelas marcas representavam. Empolgado, Alain ergueu a mão. Cada xis, disse ele, designava uma porta para dentro, e também para fora, do Mundo Médio. Os doze Portais eram conectados por seis Feixes de Luz. Os Feixes eram responsáveis por manter o alinhamento adequado de tempo, espaço, tamanho e dimensão. Como existiam seis feixes mas doze portais, os feixes unificavam portais opostos. E como cada portal era guardado por um totem animal, cada feixe também era protegido por esses totens animais, e retirava seu nome deles.
Incentivado pelo gesto de aprovação (ainda que não pelos grunhidos invejosos de seus amigos), Alain retirou cuidadosamente a bengala de Vannay do centro do mapa e a entregou a Roland. Colocando um dedo gorducho na posição de nove horas, ele o arrastou pela terra, dividindo o circulo em dois. Do Portal do Leão ao Portal da Águia, ele disse.
- E como esse feixe se chama? - Perguntou Vannay.
- Feixe do Leão, Caminho da Águia – Cuthbert respondeu baixinho.
- E se você viajasse da Águia para o Leão?
- Feixe da Águia, Caminho do Leão – Disse Cuthbert.
Um a um, Alain ligou Portais opostos enquanto Cuthbert dizia seus nomes. Coelho e Morcego, Peixe e Rato, Tartaruga e Urso, Cão e Cavalo, até que o único Feixe sem nome era o que começava às doze horas e terminava às seis. Batendo nesse ultimo Feixe, Vannay perguntou seu nome.
- Elefante-Lobo – Disse Cuthbert.
- E seu outro nome é? – Insistiu Vannay.
- O feixe de Gan. – Respondeu Alain.
Vannay se virou para Roland, que até aquele momento
– como de costume – não havia dito nada. E quanto a você, Tagarela?,
perguntou Vannay. Pode quebrar seu silencio perpetuo e nos dizer quem
é Gan?
Mas, em vez de falar, Roland se levantou e tornou a plantar o cajado
negro de bétula de Vannay no centro do circulo, onde todos os Feixes
se cruzavam. Ele enfiou a bengala com tanta força que ela tremeu por
um momento, quase zunindo no ar.
- A Torre Negra – Roland respondeu. – A Torre é Gan, e Gan é a Torre.
Concordando com a cabeça, Vannay olhou o garoto de dez anos sob suas sobrancelhas grisalhas e desgrenhadas. Embora nunca fosse tão rápido nas lições quanto seus amigos, o filho de Steven Deschain às vezes tinha vislumbres inesperados de intuição. Por isso não era tão surpreendente que ele tivesse sido o primeiro a entender o significado da bengala. Contudo, apesar do brilhantismo ocasional e da esperança secreta de Vannay de que o garoto se concentrasse mais em seus estudos, Roland continuava sendo mais um guerreiro que um acadêmico. Mas, pensando bem, talvez isso não fosse uma desvantagem para o filho de um dinh. Naqueles dias de agitação civil, era mais provável que os homens seguissem um líder que brandisse uma espada do que um que sacudisse m livro. Assim como seus pais antes dele, o garoto Deschain se tornaria um belo dinh um dia, e um bom defensor do Branco, e da Torre. Isto é, se conseguisse aprender a controlar seu temperamento e ouvir seus conselheiros.
Enquanto Vannay começava a se perder em devaneios,
o garoto em pé a sua frente – alto para sua idade, e com a luz do sol
baixo atrás dele – por um momento se transformou numa coluna de sombra,
e sua identidade parecia se deslocar e se transmutar. Para o olho interior
de Vannay, a coluna de sombra que bloqueava a luz não era um garoto,
mas um enorme edifício cinza e preto cujas pedras não eram pedras, mas
carne endurecida, cujos corredores ecoavam com os gritos de almas perdidas,
e cuja espiral ascendente de janelas emitia uma diabólica luz azul.
Era como se o garoto e Torre se fundissem em um único ser, ou o garoto
e seu ka fossem engolidos pela Torre. Naquele momento, o velho que havia
tentado ensinar consideração e gentileza a gerações de pistoleiros aprendizes
viu o futuro de seu pupilo se desenrolar diante dele com um largo fio
de sangue. E ao fim? Os campos vermelhos de Can´-Ka No Rey, e a torre,
erguendo-se sinistramente em seu tapete de cantantes flores escarlates.
Mas a força dessa visão desapareceu para Vannay quase no mesmo instante.
Roland era novamente apenas um garoto teimoso, ainda que bem-nascido,
e a única luz azul era o azul claro e límpido de seus olhos, que já
eram severos demais para alguém tão jovem.
- E o que é a Torre? – Vannay perguntou suavemente
quando Roland, agora se sentindo incomodado por sua própria ousadia,
voltou ao costumeiro silencio melancólico e se sentou.
- O sustentáculo do espaço e do tempo – Cuthbert e Alain responderam
em uníssono.
- E o que isso significa exatamente? – Perguntou Vannay.
Os garotos nada responderam, e então Vannay explicou.
Embora o Mundo Médio se assemelhasse a uma ilha em
forma de disco flutuando no mar de Prim, que por sua vez não era nada
além de uma gota de potencial mágico flutuando no vácuo do espaço todash,
o Mundo Médio não estava só. Arthur Eld havia chamado seu reino de Mundo
Total, mas esse nome era enganador. O reino do Eld se estendera por
todas as terras habitáveis conhecidas – por isso o epíteto do império
– mas só no Mundo Médio ele fora um reino. E existira em apenas um nível
da Torre.
Apontando seu desenho com o cajado, Vannay contou aos seus alunos que
existiam muitos, muitos mundos no universo. Alguns desses mundos eram
habitados ou habitáveis. Mas, assim como o Mundo Médio, cada um desses
outros mundos tinha caminhos de entrada e saída – os Portais.
Os maiores Portais do Mundo Médio, e os mais fortemente
protegidos, eram os Portais dos Feixes que Alain e Cuthbert haviam nomeado.
Eles haviam sido criados quando Gan teceu o universo a partir da substancia
mágica do Prim. Mas, como os garotos sabiam, esses Portais não eram
os únicos caminhos de entrada e saída do Mundo Médio. Os círculos druites
também continham uma espécie de Portais dentro de seus antigos anéis
de pedra. Mas essas eram guardadas por demônios. Lúminas – aqueles lugares
doentes onde o tecido da realidade havia se desgastado até não sobrar
quase nada – também eram portas, mas as lúminas levavam ao espaço todash
e os monstros famintos que espreitavam ali. Eles não estavam a salvo.
Mas nem mesmo esses atalhos eram o único método de se mover entre mundos.
Uma seita religiosa conhecida como Manni havia aperfeiçoado maneiras
de viajar de uma realidade a outra. Os Capas Azuis chamavam a si mesmos
de Povo-Vidente, ou Viajantes n Vento do Ka. Cada Manni do sexo masculino
passava anos aprendendo a meditar e a usar os pêndulos e imãs que os
guiavam pelos todash-taken, ou os buracos na realidade. Mas, como os
Manni haviam atestado em muitas ocasiões, a forma deles de viajar também
tinha seus riscos, e um deles, não o menor, era que um viajante jamais
podia garantir que a versão da Terra para a qual ele retornava era exatamente
a mesma que ele havia deixado.
Embora uma pessoa pudesse viajar entre mundos por meio dos Portais dos Guardiões, os círculos de pedra druites, ou seguindo os traiçoeiros todash-taken, o pilar central e estável sobre o qual todos os mundos giravam como discos metálicos sobre uma agulha central era a própria Torre Negra. Os mundos giravam e as estações passavam, mas a Torre Negra estava além do tempo. Ela gerava o tempo. De cor cinza-esfumaçada e cercada por janelas espiraladas que emitiam uma luz azul bruxuleante, aquele sustentáculo da existência era o ponto nodal do universo. Escala-lo era como entrar numa concha do mar. Cada uma de suas estreitas escadarias em espiral levava a um nível de criação diferente – um período de tempo distante, uma realidade alternativa, até mesmo uma versão completamente inimaginada e inimaginável do agora. Nossos outros eus, que Vannay chamava de nossos gêmeos, existiam nesses mundso alternativos. Por isso, para nossa proteção, fomos proibidos de entrar na torre, embora muitos homens, ansiosos para mudar o destino da Terra ou reverter seu próprio Ka, tivessem tentado. Inevitavelmente fracassaram. Mesmo o Povo Antigo, que havia tomado emprestado um pouco da magia da Torre para criar portas entre períodos de tempo e entre mundos, havia acabado por se destruir. No fim, a Torre sabia como se proteger e como manter a integridade das múltiplas realidades.
Embora a Torre estivesse no centro do mapa do Mundo Médio, ela existia em uma região limítrofe conhecida como Fim do Mundo. Gilead e os outros Baronatos interiores não apareciam no mapa, e tampouco os baronatos do Arco Exterior, já que esses termos de Interior e Exterior se referiam aos centros e periferias da vultura humana, não à geografia sagrada do Mundo Médio.
A Torre só podia ser alcançada seguindo-se um Feixe.
Mas quem quisesse seguir um Feixe deveria primeiro encontrar um. Apoiando
os joelhos artríticos no chão, Vannay se levantou com um grunhido. Apanhando
seu cajado no centro de seu mapa do Mundo Médio, ele começou a caminhar
na direção do Grande Salão de Gilead. Fez um gesto para que seus alunos
o seguissem.
Ao chegarem na entrada do Pátio Quadrado, o lugar onde cada um dos garotos
um dia teria de bater seu mestre Cort em combate se quisesse ser reconhecido
como homem e ganhar suas armas, Vannay parou. Mandou os pupilos olharem
ao redor. Notavam algo de estranho? Os garotos deram de ombros, e então
Vannay enfiou a mão num de seus bolsos volumosos e retirou uma pequena
caneca de barro, que entregou a Cuthbert e mandou que ele a enchesse
num poço ali perto. Quando o garoto saiu, Vannay retirou uma agulha
de aço de sua manga. Quando Cuthbert voltou, as mãos molhadas pela água
que havia derramado, Vannay pegou a caneca e jogou a agulha dentro dela.
Como os garotos esperavam, a agulha caiu até o fundo da caneca. Mas,
enquanto Vannay se encaminhava até o centro do jardim verde, a agulha
subiu até a superfície, girando preguiçosa por um instante antes de
apontar para leste, como se apanhada numa corrente que fluísse a partir
do Grande Salão atravessando o meio do pátio. Cuthbert perguntou ao
professor se ele havia realizado um truque de mágica, mas Vannay fez
não com acabeça. Se isto é um truque, disse ele, então o próprio universo
é um mágico.
Entregando a caneca a Alain, Vannay enfiou a mão no
outro bolso e retiroi um saquinho cheio de limalhas de ferro. Ele as
espalhou no chão na direção que a agulha apontava. As limalhas de ferro
se juntaram formando uma linha – uma linha que também apontava diretamente
para o lado oposto do Grande Salão. Os garotos ficaram boquiabertos.
Será que Vannay havia enterrado um imã na terra sem lhes dizer? Tornando
a balançar a cabeça, o velho professor lhes mandou olhar mais uma vez,
mas que desta vez não se concentrassem em nenhum objeto em particular,
relaxassem o olhar e olhassem na direção geral em que a agulha apontava.
Foi então que eles viram. As folhas dos pinheiros próximos, as marcas
de pés na terra, até mesmo as sombras deles pareciam atraídas para a
direção leste. Se dessem seis passos para frente ou seis para trás,
a magia se perdia, mas ali, diretamente em frente ao edifício mais antigo
de Gilead, no campo onde se esperava que aprendizes de pistoleiro provassem
seu velo de geração a geração, até mesmo as nuvens formavam um padrão
de espinha-de-peixe como se apanhadas em um grande fluxo invisível para
leste. Vannay mandou que os garotos fechassem os olhos. Eles sentiram
a coisa. Um rio tremendo e invisível os cercava; um rio que acabaria
por prende-los todos ao longo de seu caminho se eles deixassem. Eles
estavam bem em cima do Feixe, uma das tremendas forças magnéticas que,
embora sutil, sustentava não apenas o Mundo Médio mas o Multiverso.
Sorrindo, Vannay viu o rosto de cada garoto se tornando solete. E, por
um momento, na visão mágica que o Feixe às vezes lhe concedia, Vannay
viu os homens que um dia eles se tornariam.
De olhos ainda fechados, os garotos ouviam a voz de seu professor. O Feixe Águia-Leão corre através do Grande Salão, passa sobre o Pátio Quadrado pelas terras dos castelo, ele disse. Foi por isso que Arthur Eld escolheu este lugar para sua capital, e por isso, depois do Grande Envenenamento, os Baronatos Interiores haviam se curado muito mais rápido que as terras do Arco Exterior. A Águia e o Leão eram Guardiões fortes, tão fortes quanto a Tartaruga e o Urso, e mesmo tão fortes quanto o Elefante e o Lobo. Por isso Gilead era abençoada. Por isso os pistoleiros eram abençoados.
Vannay dispensou a turma. Depois de se curvarem em uma reverencia para o preceptor e lhe agradecer por sua aula instrutiva, os garotos correram para brincar. Eles saíram correndo ao logo do fluxo do Feixe e, embora não tivessem contado isso a seu instruitor, naquele dia inventaram um novo jogo: ele se chamava Conquistando a Torre.
Fonte:
Hq “The Gunslinger Born” (Nasce o Pistoleiro)
Escrito por:
Robin Furth
Ilustrado por:
Jim Calafiore e June Chung
Tradução e adaptação:
Fábio Fernandes/PF