FanFic: “MEDO LÍQUIDO”

Com as luzes apagadas era difícil de acreditar que se estava no mesmo quarto. Mamãe resolveu mudar um pouco de estratégia por causa de algum livro ou programa de tevê sobre educação infantil que diz que ‘as crianças tem de aprender desde cedo a enfrentar os seus medos’. Foram exatamente essas as palavras dela e ele sabia que sua falta de criatividade trouxe essa frase inteira e prontamente do livro-ou-programa. Ele a amava, mas sabia que não tinha tanta habilidade para educar uma criança. Não importava, as luzes não precisavam estar apagadas para que ele desconfiasse o que tinha ali. Já tinha visto o bastante em seus 7 anos de vida…
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Mamãe conversou com ele no último minuto antes de dar o beijo de boa noite.
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      – Daniel, hoje a mamãe vai fazer as coisas um pouco diferentes. Mas é para o seu bem, não se preocupe. – disse ela. E chamar pelo nome original alertava algum tipo de conversa séria ou sermão. Na ocasião, era uma conversa séria. E estúpida.
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     ‘Okay mamãe, acho que posso tentar enfrentar alguns medos hoje, se você diz que fará bem para mim. Mas não quero nem a luz de cabeceira ligada. Se é assim, não quero ver nada de verdade.’ Foi a resposta que Danny deu e não achou muita graça no risinho que recebeu em troca. Era algo como ‘seu bobinho, quanta imaginação‘. Não mamãe, você está enganada. Nessa ocasião, você está muito enganada.
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      Enfim ela se foi com um ‘boa noite querido, seja corajoso pela mamãe‘ e deixou o trum da porta. Aquilo ecoou durante um certo tempo na cabeça de Danny. Mais tempo do que devia. Sua última visão nítida foi o semblante de mamãe cada vez menor e aquela luz branca e fraca da lua iluminando a sua volta. Era como se quisesse zombar de sua cara. A lua não costumava aparecer muito na sua janela. Danny gostava dela, mas não teria tanta certeza se continuaria depois dessa noite. Não, definitivamente não era mais o seu quarto. Poderia ainda ser um quarto, mas não seu.
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      Resolveu tentar fechar os olhos. As coisas começaram a ir bem. Já estava começando a entrar no primeiro estado do sono, onde seu corpo relaxa e sua mente começa a trabalhar mais lentamente do que o normal. Já se via feliz e orgulhoso de si mesmo acordando na manhã seguinte, e mamãe ia elog…
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        ‘Que barulho foi esse?‘ Danny pensou, e foi o suficiente para despertá-lo novamente. Um riso talvez ou algum pássaro perto da janela entreaberta. Não, era um riso. Um riso fino e debochado, curto e claro. E com ele veio o primeiro sinal de medo. O coração que antes estava ficando cada vez mais lento, diminuindo gradativamente o metabolismo do corpo, então se acelerava com os pensamentos. Danny estava sim com medo, não muito mas estava. Era o que ele chamava de medinho bobo.
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     A coragem para analisar o quarto com os olhos veio não se sabe de onde, foi como um instinto do cérebro. Seus olhos estavam mais acostumados com a luz fraca naquele momento e ele viu tudo mais claramente. Se não soubesse antes, aquele seria o momento para concluir que não era mais o seu quarto. Aquele que brincava durante toda a tarde depois da aula até o início da noite, onde as coisas começavam a ficar um pouco menos infantis conforme o sol ia se pondo. Era o momento de ir para a sala e ver de uma forma não tão espontânea os noticiários do papai. Eles não entendiam muito bem, mas não tinha o porque de condená-lo por isso. Na verdade agora, se pensasse melhor, perceberia que não era mais um quarto. Pelo menos não para dormir ou brincar.
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      Sua escrivaninha parecia uma mesa com correntes, a cadeira tinha argolas grossas onde ficariam os pulsos e os tornozelos e era de um ferro que nunca tinha visto, o guarda roupa tinha portas de madeira velha e grossa, como portas de uma igreja antiga. Tinha várias trancas do lado de fora, de cima a baixo, todas livres. Sabia que a porta era grossa porque estava entreaberta agora e sabia que tinham olhos o observando dali. Olhos vermelhos cor de sangue. Olhos que brilharam mais ainda quando sabiam que ele estava olhando. Quase podia sentir o sorriso do que quer que fosse aquilo. Ah sim, ele SABIA que aquilo estava sorrindo. Assim como sabia que não ia ficar só observando.
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      Fechou os olhos de novo, com toda a força que pode. Não ia aguentar muito tempo, já sentia as lágrimas vindo. Mas ele não iria chorar. Eram lágrimas de medo. Mas não o medinho bobo, muito mais que isso. Gostaria de poder pegar as cobertas em cima da sua barriga, mas estava assustado demais para conseguir se mexer. Assustado demais de não achar as cobertas, de encostar em alguma mão desprovida de pele e carne, de abrir os olhos e ver um rosto feio e assustador a menos de cinco centímetros do seu. E o pior de tudo, com aquele olhar perverso e debochado. Talvez pronto para machucá-lo ou só apenas vê-lo gritar como uma menininha. ‘Eu não sou uma menininha!’
      E abriu os olhos.
      E não gostou do que viu.
     A porta do “guarda-roupa” estava escancarada, e a peça tinha dobrado de tamanho. Não mais existia porta – talvez para entrar, não para sair dali – e a janela era apenas um quadrado numa altura que nem mesmo ele de pé em cima de um banquinho alcançaria. E a janela tinha grades em vez de vidro.
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     Os possíveis cantos escuros espalhados pelo quarto haviam triplicado e com isso, as chances daquilo estar onde bem entendesse. Talvez mesmo embaixo da sua cama ou… Espere um pouco! A sua cama também não era mais a mesma e… Oh, nunca tinha sentido uma dor tão forte nas costas! Quase gritou, na verdade sentiu uma vontade imensa de gritar mas pensou que poderia acordar ou enfurecer aquilo onde quer que ele estivesse.
      De repende se viu saltando da cama, que antes era um colchão macio com seu lençol do pernalonga tinha, sim era isso. Pregos! Centenas de pregos em fileiras e ele já tinha visto isso em algum lugar porque mamãe lhe contou uma história antiga sobre a casa e… ‘Mamãe, sim! Ela pode me ajudar!
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      – Mamãe! MAMÃEEEEE!!! – gritou com tudo que tinha e não estava mais se importando se ‘aquilo’ ia ficar bravo ou atacar, sabia que mamãe viria e torcia para que chegasse em tempo.
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      Ouviu os passos rápidos dela indo abrir a porta do quarto que ficava dobrando o corredor, mais ou menos uns quinze passos dali. Dois minutos no máximo, talvez um e meio agora.
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      E ele viu, oh ele viu! ‘Aquilo’ estava saindo de trás da mesa com as correntes e ele pode sentir a raiva, a fúria por ter gritado. Tinha os olhos mais vermelhos cor de sangue do que nunca, o nariz era torto para o lado direito e não tinha a bochecha esquerda. Sua boca, meu Deus, sua boca era enorme. Desproporcinal ao tamanho do rosto, como se tivessem esticado ela ao máximo que podia e esquecido de colocar no lugar de novo. A pele era cinza com várias manchas pretas, onde algumas das manchas maiores não tinham carne no centro, mostrando o branco dos ossos. Os cabelos negros e compridos estavam tão arrepiados que poderia jurar que era por causa de um choque tremendamente forte. Os olhos – com um deles quase saindo da órbita – estavam arregalados e o consumiam com um ódio puro. ‘Aquilo’ corria na sua direção com uma andar desengonçado, como se já não dominasse totalmente os músculos das pernas e braços. E Danny não aguentou. Sentiu uma vontade imensa de gritar de novo, o mais alto que podia. E o fez.
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      Foi o pior erro. Não era para isso ter acontecido, ele sabia. ‘Aquilo’ acabou vindo mais rápido, não tinha como fugir. Tinha que esperar mamãe chegar e arranjar algum jeito de ganhar tempo. Escutou e sentiu. Sim, naquela altura ele tinha dobrado todos os sentidos. À sua esquerda tinha a cama e não poderia pular em cima dela, a não ser que quisesse inutilizar algumas partes do seu corpo. Na direita, a uns três ou quatro passos o “guarda-roupa”. E ele não se arriscaria a entrar, talvez nunca mais voltasse ou ficasse trancado e talvez tivesse mais alguma daquelas coisas ali dentro o esperando.
     ‘Ah mamãe, chegue de uma vez!‘ pensou Danny. ‘Aquilo’ estava a menos de um metro dele e praticamente, não sabe se ouviu de verdade, os pensamentos da coisa.
       ‘OH SIM, DANNY! EU VOU TE PEGAR, DEPOIS PEGAR SUA QUERIDA MAMÃE E TE FAZER ASSISTIR ELA PERDER UM BRAÇO E UM FÍGADO DE UMA VEZ SÓ, E VOU PEGAR SEU LUGAR E FAZER ELA ACREDITAR QUE TUDO FOI UM PESADELO E QUE VOCÊ SOU EU E VOU FAZER O MESMO COM ELA AMANHÃ, VOU VER O SANGUE SAIR JORRAR E ESCORRER, VOU BEBER UM POUCO PARA SENTIR O PRAZER E OLHAR SEUS OLHOS ESBUGALHADOS DE MEDO E ME ALIMENTAR DELE TAMBÉM E TALVEZ QUANDO EU ENJOAR VOU COMER A CARNE CRUA E LAMBER OS OSSOS!
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Não, isso não podia estar acontecendo. É um pesadelo, TEM QUE SER!‘. Danny viu mais claramente quando ‘aquilo’ passou por um foco de luz. Os dentes que restavam eram extremamente compridos e desparelhos. Uns para frente, outros para trás sem padrão. Sua língua trazia a podridão de tudo o que existe de mais perverso no mundo. E eram duas, não! era uma cortada no meio, mas até o final. Escorria um líquido espesso da sua boca, mas não era apenas saliva. Era outra coisa, mas ainda não sabia o quê.
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       ‘Aquilo’ chegou perto, bem perto agora e o agarrou pelo pescoço. Não tinha mais tempo de fugir. Sentia os dedos daquilo e percebeu as unhas afiadas penetrando a sua pele. O sangue começando a escorrer pelo peito e aquela sensação de algo quente e dor, muita dor. A língua, ou melhor, as línguas se arrastavam sobre seu rosto para todos os lados. Estava se alimentando do medo e do horror que tinha provocado. E agora sabia o que era aquela “saliva”, e custou alguns segundos para perceber. Não era algo que existia nesse mundo, mas se existisse assim seria. Com um cheiro horrível e ocasionalmente viciante.
        Medo líquido.
      A expressão daquilo era de prazer, mas mesmo assim mantinha os olhos bem abertos olhando de um lado para outro. Estava em transe. O sangue corria cada vez mais e mamãe não vinha. Ela não vinha!
      ‘Oh mamãe, onde você está agora?‘ E de repente ouviu, quase como resposta.
    A porta se abriu lentamente e mamãe entrou. A luz penetrando na peça, ofendendo e afastando a escuridão.
      – Oh meu Deus, Danny! O que diabos está FAZENDO?!
     Danny lambia seu próprio rosto. Suas unhas trabalhosamente afiadas dentro de seu próprio pescoço, o sangue cobrindo toda a parte frontal de seu pijama. Os olhos arregalados, mais do que já estavam olhavam ela na porta e mantinham uma expressão mista de prazer, ódio e susto.
     Danny a viu se aproximando rápido e não entendeu porque mamãe não enxergava ‘aquilo’. Ele estava na sua frente agora, assustado com aquela situação. Iria conversar bastante com mamãe e papai e tentar convencê-los da verdade, por mais difícil que fosse e…
      ‘O que está acontecendo aqui afinal?!‘ Danny pensou.
     Ela não veio em sua direção. Simplesmente parecia que não o tinha visto ali a meio metro de distância. Segurava ‘aquilo’ pelos ombros e sacudia. Gritava algo, mas não dava pra entender direito. Ela chorava ao mesmo tempo, na verdade estava ajoelhada em prantos. Olhava-o como se… ‘Não! Isso não pode ser verdade.
      ‘Aquilo’ era ele agora! Com o pijama cheio de sangue no peito e o pescoço furado em cinco lugares, de onde o sangue saía. Suas unhas afiadas e compridas pingavam o líquido espesso e por um momento ele viu. Os olhos estavam vermelhos. Vermelhos cor de sangue.
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FIM
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Conto dedicado ao amor da minha vida que me traz toda a inspiração e vontade com um simples sorriso, Júlia Núñez.
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Charles Prietto

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