Título: Pós-Vida (tradução livre)
Título Original: Afterlife
Personagens: Isaac Haris, William Andrews
Cidades: Nova York
Ano da primeira publicação: 2013
Publicado pela primeira vez em: Revista Tin House, Junho de 2013
Está na coletânea: The Bazaar of Bad Dreams
Nota: 4/5
William Andrews está morrendo. Ele passou os últimos dezoito meses prostrado em uma cama, graças a um câncer de cólon. Sua última expressão antes de morrer é um leve sorriso de canto de boca, que sua esposa interpreta como um agradecimento ao beijo que ela dá, mas que não poderia estar mais errada. Na verdade, Andrew está aliviado, porque a dor que viera sentindo nos últimos meses finalmente parara, e ainda que ele estivesse morrendo, ele estava feliz por isso. Acompanhado pelo fim da dor crônica, ele enxerga um pontinho de luz branca, se expandindo de forma constante, e quando menos espera, ele encontra-se no que ele começa a imaginar se é realmente o céu.
Andrew está em pé, em um correr de um escritório normal, como muitos que ele vira em vida. Em uma das paredes está fixada a fotografia de um piquenique de uma empresa, da qual Andrew não se recorda. Dos rostos na foto, entretanto, ele se lembra muito bem. Estão ali muitas faces que fizeram parte do seu passado, direta ou indiretamente. Logo à frente ele encontra uma porta com o nome “Isaac Harris” impresso nela. Quando entra na sala ele encontra o próprio Harris, uma espécie de “assistente espiritual” que ele logo descobriria estar ali por ter sido condenado a pagar seus pecados em uma espécie de “purgatório de tempo indeterminado”. Harris é o responsável por recepcionar as almas que por ali passam e por lhes dar duas escolhas: Há duas portas para elas seguirem, dali para adiante. Se Andrew optar pela porta da esquerda, ele voltará no tempo e viverá novamente sua vida, sem se recordar de nada, além de uma ou outra sensação de déjà vu. O próprio Harris deixa claro que Andrews já visitou seu escritório várias vezes, e em todas elas acabou optando pela porta da esquerda, apesar de Harris sempre lembrá-lo que não há como mudar o passado e que as coisas que aconteceram antes, invariavelmente acontecerão de novo. Se Andrew optar pela porta da direita ele vai “seguir em frente” e sua existência será simplesmente apagada, para sempre.
“Afterlife” (Após a Vida, em tradução livre) foi publicada pela primeira vez na edição de Junho de 2013 da revista literária Tin House. Posteriormente a história foi revisada e incluída na coletânea mais recente de contos do autor chamada “The Bazaar of Bad Dreams” (O Bazar de Pesadelos, em tradução livre), ainda inédita no Brasil, mas que provavelmente será publicada, já que a Suma de Letras já adquiriu os direitos dela.
O conto foi lido pela primeira vez em um evento para arrecadar fundos para bolsas de estudo na Universidade Lowell de Massachusetts. Nele King revelou que a ideia para a história veio de suas próprias reflexões pessoais sobre a mortalidade à medida em que ele envelhecia.
A história possui uma crítica bastante explícita ao modo essencialmente corporativo como as pessoas lidam com suas vidas modernas, em especial os grandes magnatas que são focados praticamente apenas no trabalho e se esquecem que a vida familiar, os amigos e um tempo de descanso também são importantes. Quando estava vivo, William Andrews era um banqueiro importante que vivia cercado pelo trabalho. Depois de morrer, de maneira bastante irônica, ao invés de encontrar um lugar de descanso celestial, ele acaba dando de cara com um “pré-céu” estritamente burocrático e que permanece lhe impondo escolhas, mesmo após a morte.
Curiosidades
William Andrews foi, em vida, um banqueiro da Goldman Sachs, um grupo financeiro multinacional real, seriado no Financial District de Nova Iorque. Fundado em 1869, o grupo foi objetivo de muita controvérsia e de várias acusações de fraude e práticas inadequadas, em especial desde o início da crise financeira global que aconteceu entre os anos de 2000 e 2010. Em 2008 esteve prestes a ir à bancarrota, e acabou passando de banco de investimentos para se tornar um banco comercial. Na história, Andrews está implicado diretamente na crise financeira da empresa.
Isaac Harris, o homem que recepciona Andrews no “purgatório”, existiu realmente. Ele foi um dos donos da fábrica Triangle Shirtwaist Company, de Nova York, que fabricava blusas para mulheres e que foi consumida por um grande incêndio em 1911.
Localizada nos últimos três andares de um edifício, a fábrica divisórias e o chão de madeira, além de muitos retalhos espalhados, o que formava um ambiente propício para o fogo que se alastrou rápido. Foi o mais mortífero desastre industrial da cidade de Nova York e um dos mais mortais na história dos EUA. 146 pessoas morreram, tanto pelo fogo, inalação da fumaça ou saltando para a morte enquanto tentavam se salvar. Foram, ao todo, 23 homens e 123 mulheres.
O desastre é constantemente associado à criação do dia da mulher, em especial nas redes sociais, porém, apesar de ter contribuído significativamente para a adesão de critérios mais rigorosos sobre as condições de segurança no trabalho, o evento não está ligado diretamente com o dia da mulher, que já tinha sido proposto um anos antes, durante a II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, realizada em Copenhague, Dinamarca.
Como o conto ainda não foi publicado no Brasil, tomamos a liberdade de traduzi-lo para vocês, Leitores Fiéis. A versão que segue é a mesma que foi lida por Stephen King no evento na Universidade de Massachusetts Lowell, em 2012, quando ainda não tinha sido revisada para o lançamento oficial na coletânea “The Bazaar of Bad Dreams”. O link para download em PDF está disponível aqui. Boa Leitura!
Pós-Vida
Stephen King
Willian Andrews, um banqueiro de investimento, morreu na tarde de 23 de Setembro de 2012.Sua morte era esperada. Sua esposa e seus filhos já crescidos estão aos pés de sua cama. Naquela noite, quando ela se encontra sozinha, longe do barulho dos familiares e das condolências, Lin Andrews liga para sua velha amiga, que ainda mora em Milwakee. Foi Sally Feeman que os apresentou, e se existe alguém que merece saber sobre seus últimos 60 segundos de casamento, esse alguém é Sally.
“Ele ficou desacordado a maior parte do tempo, por causa dos medicamentos, na última semana. Mas, no fim, estava consciente. Seus olhos se abriram e ele me viu. Ele sorriu, eu peguei sua mão e ele apertou um pouco. Eu me abaixei e beijei sua bochecha. Quando eu me levantei, ele já havia partido.”
Ela esperou horas para dizer isso, e quando o fez, caiu em lágrimas.
A ideia de sorriso que ela teve foi natural, mas mal interpretada. Ao olhar a sua esposa e seus filhos crescidos, eles lhe pareciam como prédios. Criaturas de saúde invejável, de um mundo do qual ele estava se despedindo. Bill sentiu a dor com a qual conviveu nos últimos 8 meses deixar seu corpo, como água saindo pela rachadura de um balde. Então ele sorriu.
Sem a dor, pouca coisa restou. Seu corpo se parece com uma folha seca. Sua esposa pega sua mão e se abaixa, do seu mundo alto e saudável. Ele reserva suas últimas forças, e agora as usa para apertar seus dedos. Ela se inclina. Ela vai beijá-lo.
Antes que os lábios dela toquem sua pele um buraco aparece no centro de sua visão. Não é um buraco negro, e sim um claro. Ele abre-se, ofuscando o único mundo que ele conhece desde 1956. Quando ele nasceu no pequeno hospital do Condado de Heminford, Nebraska. Durante o último ano, Bill aprendeu muito sobre a passagem da vida após a morte, pesquisando no computador, sempre preocupado em apagar o histórico para não aborrecer Lin, que está sempre exageradamente alerta. Apesar da maioria das coisas parecerem idiotices, o fenômeno “caminho da luz” pareceu ser verdadeiro. Primeiro, porque já foi reportado por diversas culturas. Segundo, porque tem uma resga de credibilidade científica. Uma teoria dizia que a luz é resultado da sensação repentina do sangue fluindo para o cérebro. Em outra, mais elegante, dizia que o cérebro está realizando último escaneamento, num esforço de encontrar uma experiência compatível com a morte.
Ou então, talvez sejam todos os fogos de artificio finais.
Seja qual for a causa, Bill Andrews está a vivenciando. A forte luz está engolindo sua família, assim também como o quarto de onde em breve será retirado seu corpo sem vida. Nas suas pesquisas ele se acostumou em ver muito a sigla “E.Q.M”, que quer dizer Experiência de Quase Morte. Em muitas dessas experiências, a luz branca se torna um túnel e no final dele estão seus entres queridos que já morreram, ou amigos, ou anjos, ou Jesus, ou qualquer outra entidade benéfica.
Bill não espera nenhum comitê de boas vindas. Ele espera que quando os fogos terminarem, haverá escuridão, mas não é isso que acontece. Quando a luz se vai , ele não está no céu nem no inferno. Ele está num corredor. Ele supõe ser o purgatório. As paredes pintadas de verde e a sujeira do lugar podiam muito bem passar pelo purgatório, mas para isso teria que ser infinito. Mas esse corredor termina a alguns metros a frente, numa porta com um nome escrito; ISSAC HARRIS – GERENTE.
Bill permanece parado por um breve momento, analisando. Ele está usando o pijama em que morreu – presumindo que realmente tenha morrido. Mas não há nenhum sinal do câncer que primeiro experimentou seu corpo, para depois deixa-lo só pele e osso. Ele se olha para descobrir que voltou a ter oitenta e seis quilos, seu peso de guerra – só um pouco barrigudo – antes do câncer atacar. Ele sente a própria bunda e a base das costas. As feridas se foram. Ótimo. Ele respira fundo e exala sem tossir. Melhor ainda.
Ele dá alguns passos pelo corredor. À sua esquerda há um pequeno extintor de incêndio com uma frase curiosa escrita logo acima: ANTES TARDE DO QUE NUNCA. À sua direita há um quadro de avisos, preso a ele uma série de fotos. Acima do quadro há uma faixa com uma frase escrita a mão dizendo: PIC-NIC DA EMPRESA – 1956! COMO NOS DIVERTIMOS!
Bill examina as fotos que exibem executivos, secretárias, pessoas de escritório e uma porção de crianças. Alguns caras cuidam da churrasqueira, um deles está usando o chapéu clássico. Garotos e garotas jogando ferradura, garotos e garotas jogando vôlei, garotos e garotas nadando num lago. Os rapazes estão usando sungas que parecem obscenamente pequenas e apertadas, para a visão do século 21. “eles têm o físico de meninos de quinze anos,” pensa Bill. As garotas estão usando maiôs no estilo “Esther Willians”, do tipo que fazem com que suas nádegas pareçam dois balões sobre suas coxas. Cachorros-quentes estão sendo consumidos, cervejas estão sendo bebidas. Todos parecem estar se divertindo para valer.
Em uma das fotos ele vê o pai de Richie Blankmore entregando a Annmarie Winkler um marshmallow assado. Isso é ridículo, porque o pai de Rick era um caminhoneiro e nunca fora a nenhum pic-nic da empresa em toda a sua vida. Annmarie foi uma garota com quem ele saiu na faculdade. Em outra foto ele vê Bob Tisdale, um colega de faculdade dos anos 70. Bob, que se autointitulava de “o apito”, morreu de ataque cardíaco por volta dos 30 anos. Ele provavelmente já havia nascido em 1956, mas devia estar no jardim de infância nessa época, e não tomando cerveja na beira de um lago qualquer. Nessa foto “apito” devia ter uns vinte anos, a idade que realmente tinha quando Bill o conheceu. Numa outra foto, Eddie Scarpone e sua mãe, estão batendo numa bola de vôlei. Eddie era o melhor amigo de Bill, quando sua família se mudou de Nebraska para New Jersey. Gina Scarpone, passando bronzeador em seu corpo e usando apenas uma calcinha branca, era uma das fantasias mais eróticas de Bill, quando ele ainda estava na fase de descascar a banana.
O cara com chapéu de cozinheiro é Ronald Reagan. Bill se aproxima da foto, quase esfregando o rosto na foto em preto e branco e não tem dúvida. Era mesmo o 40º presidente dos Estados Unidos que fritava os hambúrgueres naquela festa da empresa. Mas que empresa? Que lugar era aquele, afinal?
Sua euforia de estar livre da dor já estava sendo tomara por uma sensação de descolamento. Ver esses rostos familiares em fotos não fazia nenhum sentido. E o fato dele não conhecer a maioria delas não facilitava as coisas. Olhou para trás e viu uma escada que levava para uma outra porta. Pintado em letras garrafais estava escrito TRANCADA. Isso o levava, então, para o escritório de Harris. Bill vai até a porta, hesita por um instante e bate.
“Está aberta!”
Bill entra. Em pé, em frente á uma mesa abarrotada, há um homem gordo usando calça social e um suspensório. Seu cabelo castanho está partido ao meio. Ele usa óculos sem aro. As paredes estão cheias de faturas e outras coisas que fazem Bill se lembrar da empresa em que trabalhava o pai de Richie Blankmore. Ele foi lá algumas vezes com Richie e aquele escritório se parecia muito com esse. Sem janelas.
De acordo com o calendário em uma das paredes, é Março de 1911, o que faz tão pouco sentido quanto 1956. À direita de Bill há uma porta, à sua esquerda, outra. Não há janelas, mas há um tubo de vidro saindo do teto e logo abaixo dele um cesto de roupas sujas. O cesto está cheio de papéis amarelos, talvez sejam faturas ou talvez memorandos. Uma pilha alta de arquivos repousa na cadeira na frente da mesa.
“Bill Anderson, não é mesmo?” O homem vai para trás da mesa e se senta. Não há nenhuma oferta de aperto de mãos.
“Andrews.”
“Certo. E eu sou Harris. Aqui estamos de novo, Andrews.”
Tendo em vista toda a pesquisa de Bill sobre a morte, o comentário até faz um certo sentido. Contanto, é claro, que ele não tenha que voltar como um idiota, ou algo assim.
“Então, reencarnação. É esse o trato?”
Isaac Harris suspira.
“Você sempre me pede pela mesma coisa, e eu te dou sempre a mesma resposta… Não mesmo.”
“Eu estou morto, não é?”
“Você se sente morto?”
“Não, mas eu vi a luz!”
“Ah, é claro. A famosa luz branca. Lá estava você e aqui está agora. Espere um pouco, segure as pontas aí.”
Harris vasculha os papeis em sua mesa e não em contra o que procura. Começa a abrir algumas gavetas. De uma delas ele tira umas fotos e escolhe uma. Abre algumas páginas.
“Só para refrescar minha memória… Banqueiro de investimentos, certo?”
“Sim.”
“Mulher e três filhos. Dois meninos e uma menina.”
“Correto.”
“Espero que me perdoe, mas é que eu tenho uma centena de peregrinos, e é difícil manter tudo em ordem. Eu fico prometendo para mim mesmo organizar esses arquivos, mas isso é trabalhado de secretária, e eles nunca me dão uma…”
“Quem são eles?”
“Não faço ideia. Todas as comunicações chegam pelo tubo,” ele o cutuca, “O tubo chacoalha e pronto. Funciona por ar-comprimido. Tecnologia de ponta.”
Bill pega os arquivos de uma cadeira e de sobrancelhas erguidas, olha para o homem.
“Apenas coloque-os no chão,” Harris diz.
“Por hora é o bastante. Um dia eu tenho que organizar tudo isso. Isso se existirem dias. É possível que sim. E noites também. Quem pode confirmar!?” Não sei se notou, mas não há janelas aqui e nem relógios.
Bill senta-se.
“Por que me chama de peregrino, se não existe reencarnação?”
Harris se recosta na cadeira e entrelaça suas mãos. Ele olha para cima e vê o tubo. Talvez aquele tipo de coisa tenha mesmo sido algo inovador por volta de 1911, embora Bill lembre que aquele tipo de coisa também era usado em 1956.
Harris sacode a cabeça e sorri, mas de uma forma negativa.
“Se você soubesse como vocês se tornaram cansativos. De acordo com este arquivo, esse é o nosso 50º encontro.”
“Eu nunca estive nesse lugar na minha vida”, Bill diz. “Exceto que não é a minha vida, certo? É a minha vida após a morte.”
“Na verdade, é a minha. Você é o peregrino, não eu. Você e os outros idiotas que vem e vão. Vocês escolhem uma das portas e vão. Eu fico. Não tenho banheiros aqui, porque eu não preciso. Não tenho um quarto porque não preciso dormir. Tudo o que faço é observar vocês fazendo suas viagens. Vocês entram e fazem as mesmas perguntas e eu sou sempre as mesmas respostas. Essa é a minha vida após a morte. Parece divertido?”
Bill, que teve contato com todas as teorias teológicas, devido suas pesquisas, percebe que estava certo sobre o que pensou quando estava no corredor.
“Você está falando sobre o purgatório.”
“Não há dúvida de que a única coisa que eu quero saber é quanto tempo ainda ficarei aqui. Eu adoraria te dizer que eu vou enlouquecer se não sair daqui, mas acho que posso fazer isso tanto quanto cagar ou tirar uma soneca. Eu sei que meu nome não te diz nada, mas nós já discutimos isso antes. Não em todas as vezes que você veio, mas em quase todas.” Ele levanta um dos braços com força o bastante para fazer com que os papéis na parece balancem. “Este é… – Ou era. Eu não sei exatamente qual é a forma correta de se falar – meu escritório na terra.”
“Em 1911?”
“Por aí. Eu perguntaria se você saberia me dizer o que é uma shirtwaist, Bill… Mas como eu sei que você não sabe, eu vou te dizer: é uma blusa feminina. Na virada do século, eu e meu chapa, Max Blanck, tínhamos um negócio chamado “Companhia Triangle Shirtwaist”. Negócio lucrativo, mas as mulheres que trabalhavam lá eram uma verdadeira dor de cabeça. Sempre fugindo para fumar e – o pior – roubando materiais, que colocavam em suas bolsas ou enfiavam embaixo das saias. Então trancamos as portas para manter elas em seus turnos e revista-las na hora da saída. Pare encurtar, o maldito lugar pegou fogo um dia. Max e eu escapamos quando subimos para o telhado por uma escada de incêndio. Muitas daquelas mulheres não tiveram a mesma sorte. Mas vamos ser honestos e admitir que havia muitas pessoas para se culpar. Fumar era terminantemente proibido, mas muitas delas fumavam de qualquer jeito, e foi um cigarro que começou o incêndio. O chefe dos bombeiros disse. Max e eu fomos julgados por homicídio culposo e surpreendentemente fomos absolvidos.”
Bill se lembrou do extintor de incêndio no corredor com os dizeres “ANTES TARDE DO QUE NUNCA”. Ele pensa: “O senhor deve ter sido considerado culpado no outro julgamento, ou então não estaria aqui”.
“Quantas mulheres morreram?”
“146” disse Harris. “E me arrependo por cada uma , Sr. Anderson.”
Bill não se importou em corrigi-lo por errar seu nome, afinal, vinte minutos antes ele estava morrendo em sua cama, agora ele estava fascinado por essa história antiga, da qual ele nunca havia ouvido falar antes. Ao menos ele não se lembrava de tê-la ouvido antes.
“Não muito tempo depois de Max e eu termos decido as escadas de incêndio, as mulheres se empilharam nelas. A maldita coisa não pode aguentar aquele peso. A escada rachou e arremessou uma dúzia delas numa queda de trinta metros direto para o chão pedregoso. Todas elas morreram. Mais quarenta pularam pelas janelas do nono e décimo andares. Algumas estavam pegando fogo. Todas elas morreram também. A brigada chegou com redes de proteção, mas as mulheres passavam direto por elas, explodindo no chão como sacos cheios de sangue. Uma imagem terrível, Sr. Anderson, terrível. Outras pularam pelo vão do elevador, mas a maioria delas simplesmente queimou.”
“Como no 11 de Setembro, mas com menos mortos.”
“É o que você sempre fala.”
“E agora você está aqui.”
“É isso aí. Às vezes eu me pergunto quantos homens estão sentados em escritórios como este. Mulheres também. Estou certo de que existem muitas mulheres admiráveis e não vejo razão para que elas não sejam capazes de gerenciar com competência. Todas respondendo as mesmas perguntas e mandando em peregrinos. Você acha que vai tirar uma folga quando um de vocês decide usar a porta da direita, ao invés da porta da esquerda, mas não… Não! Um recipiente novinho cai pelo tubo e eu ganho um novo palhaço para repor o anterior. Às vezes dois.” Ele se inclina para a frente e fala com grande ênfase. “Este é um trabalho de bosta, Sr. Anderson!”
“É Andrews.” Billy diz – “Sinto muito pela forma como se sente, mas Jesus Cristo, aceite um pouco de responsabilidade pelas suas ações cara! Cento e quarenta e seis mulheres e você fechou as portas.
Harris soca a mesa.
“Elas estavam nos roubando!” – ele balança a pasta na frente de Bill. – “Olha só o que temos aqui, rá! O Sujo falando do mal lavado! Goldman Sachs! Fraudes de seguro, lucros astronômicos, taxas abusivas! Por acaso a frase bolha imobiliária te lembra alguma coisa? De quantos clientes confiáveis você abusou? Quantas pessoas perderam suas economias por causa de seu desleixo e ganância?”
Bill sabe do que Harris está falando, mas aquela choradeira toda (Bom… ao menos a maior parte dela) foi culpa dos seus chefes. Ele ficou tão perplexo quanto qualquer um quando a merda atingiu o ventilador. Mas para ele a maior prova de usa inocência era que ele era o peregrino e Harris estava preso naquele escritório. Ficou tentado em dizer que havia uma grande diferença entre ser roubado e queimado vivo, mas não quis jogar sal na ferida.
“Vamos parar com isso.” Ele diz. “Se você tem a informação que eu quero, por que não me dá? Me diz o que eu preciso fazer que eu largo logo do seu pé.”
“Não era eu que estava fumando.” Harris diz, num tom de voz baixo e triste. “Não fui eu que jogou o fósforo.”
“Sr. Harris?” Bill podia sentir as paredes se fechando a sua volta. “Se eu tiver que passar a eternidade aqui eu meto um tiro em mim mesmo”, ele pensa. Só que se o que o Sr. Harris disse for verdade, ele não poderia fazer isso mais do que poderia ir ao banheiro se quisesse.
“Certo, está bem.” Harris faz um barulho com os lábios, nada sútil. “O acordo é este; Saia pela porta esquerda e você viverá sua vida novamente. De A a Z. Vai recomeçar do zero. Pegando a porta da direita você sumirá. Puff. Que nem vela ao vento.”
De início Bill não comentou nada sobre aquilo. Ele estava incapaz de falar e não tinha certeza de poder confiar em sua audição. Era bom demais para ser verdade. Sua mente começou a pensar em seu irmão Mike e no acidente que ocorreu quando Mike tinha oito anos. Depois, naquele furto estúpido, quando Bill tinha dezessete. Foi só uma brincadeira, mas que poderia ter causado um buraco nos seus planos universitários se seu pai não tivesse aparecido e falado com a pessoa certa. A coisa com Annmarie na casa da fraternidade, que ainda assombra os momentos mais bizarros, mesmo após todos esses anos. E, é claro, a maior de todas as coisas…
Harri sorri um sorriso nada agradável. Ok, então seus ouvidos tinham realmente o enganado. Ou talvez Harris tenha só se vingado por ele sugerir que ele merecia ficar aqui, preso neste limbo de burocracia.
“Sei o que está pensando, porque já escutei tudo isso antes. Sobre como seu irmão estava brincando de pic-esconde quando vocês eram crianças e como você bateu a porta do quarto para manter ele do lado de fora e como o acidente cortou a ponta do mindinho dele. A coisa do furto, o impulso de apanhar o relógio e como seu pai mexeu os pauzinhos para te tirar dos…”
“É verdade, ficha limpa. Exceto a dele. Ele nunca me deixa esquecer o que eu fiz.”
“E, finalmente, a garota no porão da casa de fraternidade.” Harris ergue o arquivo. “O nome dela está aqui em algum lugar, eu imagino. Faço o melhor para manter os arquivos atualizados, quando consigo acha-los, mas por que você não refresca a minha memória?”
“Annmarie Winkler.” Bill sente as bochechas corarem. “Não foi estupro, caso esteja pensando isso. Ela me agarrou com as pernas, quando subi em cima dela, e se isso não significa consentimento, não sei mais o que poderia significar.”
“Ela também agarrou os próximos dois camaradas que chegaram com as pernas?”
“Não”, Bill sente-se tentado a dizer, “mas pelo menos não botamos fogo nela, espertão”.
Mas, ainda assim.
Fosse jogando golfe, trabalhando na oficina ou conversando com a filha – agora também universitária – sobre o trabalho de conclusão de curso, ele se perguntaria onde Annmarie estaria agora. O que ela estaria fazendo. O que se lembraria daquela noite.
O sorriso de Harris se abre. Pode até ser um trabalho de bosta, mas está claro que há partes da coisa que ele adora.
“Posso ver que esta é uma pergunta que você não quer responder, então por que não seguimos em frente? Você está pensando em todas as coisas que vão mudar na próxima volta que você der no seu carrossel cósmico. Que dessa vez você não vai esmagar o dedo do seu irmão menor ou tentar furtar um relógio no Shopping Paramus…”
“Foi o de Nova Jersey.”
Harris faz um gesto do tipo de quem está cagando e andando para o arquivo, e continua.
“Que da próxima vez não vai deixar que seus colegas fodam sua namoradinha desmaiada enquanto ela está prostrada no sofá do porão, e – a maior de todas as coisas ! – você vai mesmo marcar hora para fazer aquela colonoscopia ao invés de adiá-la, tendo agora decidido – corrija-me se eu estiver erado – que a falta de dignidade em ter uma câmera enfiada no rabo é melhor do que morrer de câncer.
“Muitas vezes eu quase contei para Lynn sobre o que aconteceu naquela festa. Eu nunca tive coragem.”
“Mas se tivesse a chance, você arrumaria tudo.”
“Se tivesse a chance, você não abriria as portas daquela fábrica?”
“É claro que abriria, mas não há segundas chances. Sinto por desapontá-lo.” Ele não parecia sentir muito. Harris parece cansado. Harris parece entediado. Harris também parece malvadamente triunfante. Ele aponta para a porta do lado esquerdo de Bill. “Use aquela – como você sempre usou – e começará tudo de novo, um bebê de dois quilos deslizando para fora do útero da mãe, para as mãos do médico. Você vai ser levado para casa – enrolado num cobertor -, uma fazenda no centro de Nebraska. Quando seu pai vender a fazenda, em 1963, você vai se mudar para Nova Jersey. Lá você vai cortar a ponta do dedo mindinho do seu irmão enquanto vocês brincam de pic-esconde. Você vai entrar para o mesmo colégio, vai assistir as mesmas aulas e tirará exatamente as mesmas notas. Vai para a faculdade de Boston e cometerá o mesmo ato de quase estupro no mesmo aposento da fraternidade. Você vai assistir enquanto os mesmos dois caras – seus camaradas – transam com Annmarie Winkler, e embora ache que deve parar o que está acontecendo, não terá coragem e nem moral para fazer isso. Três anos depois você vai conhecer Lynn DeSalvo e dois nos depois estarão casados. Você terá a mesma carreira, os mesmos amigos, o mesmo incômodo profundo sobre as ações de alguns dos seus colegas de trabalho… E permanecerá em silêncio. O mesmo médico lhe pedirá que faça uma colonoscopia quando você tiver seus cinquenta, e você prometerá – como sempre faz – cuidar desse pequeno assunto. Você não fará, e como resultado, será morto pelo mesmo câncer.” Harris larga a pasta de volta em sua mesa bagunçada. “Então você chegará aqui, como sempre faz, e nós teremos esta mesmo discussão de novo. Meu conselho seria que você usasse a outra porta e acabasse logo com isso, mas é claro que a decisão é sua.”
Bill escutou o sermão com crescente desânimo.
“Eu não vou me lembrar de nada? Nada?”
“Não exatamente.” Harris diz. “Imagino que você tenha percebido algumas fotos no corredor.”
“O Piquenique da companhia.”
“Cada pessoa que me visita vê fotos do seu nascimento e reconhece alguns rostos familiares e outros estranhos. Quando viver sua vida de novo, Sr. Anders – presumindo que decida isso – você sentirá uma sensação de déjà vu quando conhecer essas pessoas, e uma sensação de que você já viveu isso antes. O que, é claro, acontece mesmo. Você terá uma sensação fugaz, quase uma certeza, de que há mais… Como posso dizer, profundidade?… na sua vida e em sua existência, de um modo geral, do que costumava acreditar. Mas a sensação vai passar. E por que não passaria? É uma ilusão.
“Se é tudo sempre do mesmo jeito, sem nenhuma possibilidade de melhora, por que sequer estamos aqui?”
Harris dá uma batida na ponta do tubo pneumático sobre a cesta de roupas, fazendo-o vibrar.
“O CLIENTE QUER SABER O MOTIVO DE ESTAMOS AQUI! ELE QUER SABER DO QUE ISSO TUDO SE TRATA!”
Ele espera. Nada acontece. Ele cruza as mãos sobre a mesa.
“Quando Jó quis saber a resposta dessa, Sr. Anders, Deus perguntou se Jó estava lá quando ele – Deus – fez o universo. Suponho que você nem mereça uma resposta assim. Então vamos considerar o caso como encerrado. O que você quer fazer? Escolha uma porta.
Bill está pensando no câncer. A dor do câncer. Passar por tudo isso de novo… Exceto que ele não se lembraria de já ter passado por isso. Isto é, presumindo que Isaac Harris estivesse lhe contando a verdade.
“Nenhuma memória? Nenhuma mudança? Tem certeza? Como?”
“Porque é sempre a mesma conversa, Sr. Anderson. Todas as vezes, e com todos vocês.”
“É Andrews!” Ele berra, surpreendendo ambos. Numa voz mais baixa ele diz: “Se eu tentar, tentar de verdade, tenho certeza que posso me ater a alguma coisa. Mesmo que seja apenas ao que aconteceu com o dedo de Mike. E uma mudança pode ser suficiente para… Não sei…”
Pra levar Annmarie ao cinema, ao invés daquela festa de putaria, que tal?
“Sr. Andrews, há um conto de fadas que diz que antes de nascer toda alma humana conhece os segredos da vida, morte e do universo. Então, um pouco antes do nascimento, um anjo desce e põe o dedo em cima dos lábios do bebê e sussurra shh.” Harris toca seu filtro labial. “De acordo com a história, esta é a marca deixada pelo dedo do anjo. Todo ser humano tem uma.”
“Você já viu um anjo. Sr. Harris?”
“Não, mas já vi um camelo no zoológico. Escolha uma porta.”
Enquanto pensa, Bill se lembra da história que tiveram que ler secundário: A dama ou o Tigre? Esta decisão não é tão difícil assim.
“Eu preciso me ater somente a uma coisa”, ele pensa consigo mesmo, enquanto abre a porta que o leva de volta à vida. “Só uma coisa.”
Então a luz branca o envolve.
O médico, que desertará o Partido Republicano e votará em Adlai Stevenson no outono – uma coisa que sua esposa jamais deveria saber – inclina-se para frente como um garçom entregando uma bandeja e volta-se para empertigar, segurando pelas pernas um bebê nu. Ele dá uma palmada certeira no bumbum dele e o choro começa.
“Você teve um garotinho saudável, Mary.” Ele diz. “Parabéns!”
Mary Andrews pega o bebê. Ela beija suas bochechas úmidas e sua testa. Eles vão chama-lo de William, em homenagem ao seu avô paterno. Ele poderá fazer qualquer coisa, se quiser. A ideia é inebriante. Em seus braços ela segura não apenas uma vida nova, mas um universo inteiro de possibilidades. Nada, ela pensa, poderia ser mais maravilhoso.
Professor de Língua Portuguesa e Literatura, graduado em Letras pela UEG (Universidade Estadual de Goiás), pós-graduado em arte/educação pela UFG, viciado em literatura de terror/suspense, amante incondicional de séries e Hq´s e fã de carteirinha do mestre Stephen King desde 1996.
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