Ontem, 16/11/2016, a Playboy publicou em seu site oficial o novo conto de Stephen King. “The Music Room” (“A Sala de Música”, em tradução livre) faz parte de uma antologia de contos intitulada “In Sunlight or In Shadow: Stories Inspired by the Paintings of Edward Hopper” (“Na luz Solar ou na Escuridão: Histórias inspiradas pelas pinturas de Edward Hopper”). King se juntou a outros 16 escritores (Joyce Carol Oates, Michael Connelly, Megan Abbott, Craig Ferguson, entre outros…) para homenagear o pintor e artista gráfico do século XIX que tornou-se conhecido por suas misteriosas e realistas representações da solidão da sociedade contemporânea e de sua visão pessoal da vida moderna americana. Agora trazemos, com exclusividade, para vocês, a tradução da história do casal Enderby e de seus visitantes “incomuns” (para quem prefere o arquivo em PDF, pode visualizá-lo clicando aqui) Esperamos que gostem!
Room in New York (1932), por Edward Hopper. Tela que inspirou a criação do conto “The Music Room”
A Sala de Música
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Stephen King
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Tradução: Edilton Nunes
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Os Enderbys estavam em sua sala de música – assim eles a chamavam, embora fosse, na verdade,e apenas o quarto de dormir. Outrora eles pensavam que seria o berçário do pequeno James ou Jill Enderby, mas depois de 10 anos de tentativas, parecia cada vez mais improvável que um querido bebê chegasse do nada e pousasse ali. Tinham feito as pazes com a falta de filhos. Pelo menos eles tinham trabalho, o que era uma benção em um ano em que os homens ainda estavam plantados nas filas de pão. Havia períodos de baixa, era verdade, mas quando havia trabalho, eles não podiam pensar em mais nada, e ambos gostavam dessa situação.
O Sr. Enderby estava lendo o New York Journal-American, um jornal recente que não estava nem na metade do seu primeiro ano de publicação. Era e não era uma espécie de tabloide. Ele costumava começar com os quadrinhos, mas quando eles estavam no trabalho ele começava com as novidades da cidade, primeiro, folheando as histórias rapidamente, em especial a seção policial.
A Sra. Enderby sentou-se ao piano, que fora um presente de casamento de seus pais. Ocasionalmente ela acariciava uma tecla, mas não pressionava nenhuma. Hoje à noite a única música na sala de música era a sinfonia do tráfego noturno na Terceira Avenida, que entrava pela janela aberta. Terceira Avenida, terceiro andar. Um bom apartamento de Pedra Marrom. Eles raramente ouviam seus vizinhos de cima e de baixo, e seus vizinhos raramente ouviam-nos. O que era tudo de bom.
Do armário atrás deles veio um único baque. Em seguida, outro. A Sra. Enderby estendeu as mãos como que para brincar, mas quando os golpes cessaram, ela pousou as mãos em seu colo.
“Nenhuma linha ainda sobre nosso amigo George Timmons,” o Sr. Enderby disse, chocalhando o papel.
“Talvez você deva verificar o Albany Herald”, disse ela. “Eu creio que a banca de jornal da Lexington com a 60º Avenida tem ele.”
“Não precisa”, disse ele, voltando-se para as tirinhas, finalmente. “O Journal-American é bom o suficiente para mim. Se o Sr. Timmons foi tido como desaparecido em Albany, deixe aqueles interessados procurarem-no por lá.”
“Tudo bem, querido”, disse a Sra. Enderby. “Eu confio em você.” Não havia realmente nenhuma razão para não fazê-lo; até aquela época,o trabalho estava indo às mil maravilhas. Timmons era o sexto convidado no armário especialmente reforçado.
Enderby riu entre dentes. “As crianças Katzenjammer² estão aqui de novo. Desta vez elas pegaram o Capitão pescando ilegalmente – atirando uma rede de um canhão, na verdade. É muito divertido. Devo ler para você?”
Antes que a Sra. Enderby pudesse responder, outro golpe saiu do armário e sons fracos que poderiam ter sido gritos. Era difícil dizer, a não ser que alguém encostasse uma orelha contra a madeira, e ela não tinha intenção de fazer isso. O banco do piano estava tão perto do Sr. Timmons quanto ela gostaria, até que chegasse a hora de se desfazer dele. “Eu gostaria que ele parasse.”
“Ele vai, querida. Em breve.”
Outra batida, como para refutar isso.
“Foi o que você disse ontem.”
“Parece que eu fui prematuro”, disse Enderby, e então, “Oh, Deus, Dick Tracy está mais uma vez na caça do Cara de Ameixa.”
“O Cara de Ameixa me dá nos nervos “, disse ela, sem se virar. “Eu gostaria que o detetive Tracy acabasse com ele de vez.”
“Isso nunca vai acontecer, querida. As pessoas ovacionam os heróis, mas é dos vilões que eles se lembram.”
A Sra. Enderby não respondeu. Ela estava esperando pela próxima pancada. Quando chegasse – se acontecesse – ela esperaria pela outra depois disso. A espera foi a pior parte. O pobre homem estava com fome e com sede, é claro; Eles tinham deixado de alimentá-lo e de dar-lhe de beber há três dias, depois de assinar o último cheque, aquele que zerou sua conta. Eles tinham esvaziado sua carteira imediatamente, quase $200. Em uma depressão tão profunda como esta, $200 era um Jackpot¹, e seu relógio poderia acrescentar mais $20 para seus ganhos (embora, ela admitiu para si mesma, que poderia estar sendo um pouco otimista).
A conta corrente do Sr. Timmons no Albany National tinha sido o verdadeiro filão: $800. Uma vez que ele estava com fome suficiente, ele tinha se contentado em assinar vários cheques altos e com a anotação “Despesas de Negócios” escrita no local adequado em cada um. Em algum lugar, uma esposa e crianças poderiam estar dependendo desse dinheiro quando o pai não voltasse de sua viagem para Nova York, mas a Sra. Enderby não se permitiu pensar nisso. Ela preferiu imaginar a Sra. Timmons tendo uma mãe e um pai ricos no Distrito de Mansões de Albany, um casal generoso que saiu de um romance de Dickens. Eles iriam levá-la e cuidar dela e de seus filhos, meninos que podiam ser escandalosos como Hans e Fritz, os garotos Katzenjammer.
“Sluggo quebrou a janela de um vizinho e está culpando a Nancy”, disse Enderby com uma risada. “Eu juro que ele faz os Katzenjammers parecerem anjos!”
“Aquele chapéu terrível que ele usa!”, disse a Sra. Enderby.
Outra batida do armário, e muito forte, vindo de um homem que tinha que estar à beira da fome. Mas o Sr. Timmons tinha sido um dos grandes. Mesmo depois de uma generosa dose de hidrato de cloral em seu copo de vinho do jantar, ele quase dominou o Sr. Enderby. A Sra. Enderby teve que ajudar. Sentou-se no peito de Timmons até que ele se acalmou. Vulgar, mas necessário. Naquela noite, a janela da Terceira Avenida tinha sido fechada, como sempre era quando o Sr. Enderby trazia para casa um convidado para o jantar. Encontrava-os em bares. Muito sociável, era Enderby, e muito bom em distinguir empresários que estavam sozinhos na cidade, companheiros que também eram sociáveis e gostavam de fazer novos amigos. Especialmente novos amigos que podem se tornar novos clientes de um negócio ou outro. Enderby julgava-os por seus ternos, e ele sempre tinha um olho nos relógios de ouro.
“Más notícias”, disse Enderby, franzindo a testa.
Ela se endireitou no banco do piano e se virou para encará-lo. “O que foi?”
“Ming, O Impiedoso, aprisionou Flash Gordon e Dale Arden nas minas de rádio de Mongo. Existem criaturas que parecem jacarés …”
Agora do armário veio um grito de desmaio, lamentando. Dentro de seus confins à prova de sons, deve ter sido um grito quase alto o suficiente para romper as cordas vocais do pobre homem. Como Timmons poderia ainda ser forte o suficiente para expressar tal uivo? Ele já tinha durado um dia mais do que qualquer um dos cinco anteriores, e sua vitalidade, de alguma forma horrível, começara a se alimentar de seus nervos. Ela tinha esperado que esta noite pudesse ver o fim dele.
O tapete no qual ele estava para ser embrulhado estava esperando em seu quarto, e o caminhão com “Empresas Enderby” pintado no lado estava estacionado ao virar a esquina, totalmente abastecido e pronto para outra viagem para o Pine Barrens de New Jersey. Quando se casaram pela primeira vez, havia realmente uma “Empresas Enderby”. A depressão – o que o Journal-American tinha levado a chamar a Grande Depressão – tinha acabado com isso há dois anos. Agora eles tinham esse novo trabalho.
“Dale tem medo”, continuou o Sr. Enderby, “e Flash está tentando pegar ela. Ele disse que o Dr. Zarkov …”
Agora veio uma sucessão de golpes: 10, talvez uma dúzia, e acompanhado por mais desses gritos abafados, mas ainda bastante raivosos. Podia imaginar o sangue enrugando os lábios do Sr. Timmons e pingando de seus nódulos partidos. Podia imaginar como seu pescoço ficaria esquelético, e como seu rosto antes gordo teria se esticado enquanto seu corpo devorava a gordura e musculatura para permanecer vivo.
Mas não. Um corpo não poderia se canibalizar para permanecer vivo, não é? A ideia era tão pouco científica quanto a frenologia³. E como ele deve estar sedento agora!
“É tão irritante!”, Ela explodiu. “Eu odeio porque ele só continua e continua! Por que você teve que trazer para casa um homem tão forte, querido?”
Posso parar com isso, se quiser. Claro, se eu terminar, você terá que fazer a limpeza. É só justo.
“Porque ele também era um homem abastado”, disse Enderby com suavidade. “Eu pude ver isso quando ele abriu sua carteira para pagar a nossa segunda rodada de bebidas. O que ele contribuiu nos manterá por três meses. Cinco, se esticarmos.”
Thump, e thump, e thump. A Sra. Enderby colocou os dedos nas cavidades delicadas das suas têmporas e começou a esfregar.
O Sr. Enderby olhou-a com simpatia. “Posso parar com isso, se quiser. Ele não será capaz de lutar muito em seu estado atual; Certamente não depois de ter gasto tanta energia. Um corte rápido com sua amolada faca de açougueiro. Claro, se eu terminar o serviço, você terá que fazer a limpeza. É justo.”
Enderby olhou para ele, chocada. “Podemos ser ladrões, mas não somos assassinos.”
“Isso não é o que as pessoas diriam, se fôssemos apanhados.” Ele falou como desculpa, mas, ainda assim, firme o suficiente.
Ela juntou as mãos no colo de seu vestido vermelho com força suficiente para clarear os nós dos dedos, e olhou diretamente nos olhos dele. “Se fomos chamados para o tribunal, gostaria de manter a cabeça erguida e dizer ao juiz e ao júri que fomos vítimas das circunstâncias.”
“E tenho certeza de que seria muito convincente, querida.”
Outra batida por trás da porta do armário, e outro grito. Horrível. Essa era a palavra para sua vitalidade, a exata. Horrível.
“Mas nós não somos assassinos. Nossos hóspedes simplesmente carecem de sustento, como fazem tantos nestes tempos terríveis. Nós não os matamos; Eles simplesmente desaparecem.”
Outro grito veio do homem que Enderby trouxera de McSorley há mais de uma semana. Poderiam ter sido palavras. Poderia ter sido pelo amor de Deus.
“Não demorará muito”, disse Enderby. “Se não esta noite, então amanhã. E não teremos que voltar a trabalhar por um bom tempo. E ainda…”
Ela olhou para ele da mesma maneira firme, com as mãos entrelaçadas. “E ainda?”
“Parte de você gosta, eu acho. Não esta parte, mas o momento real quando nós os tomamos, como um caçador faz com um animal nos bosques.”
Ela pensou nisso. “Talvez eu faça. E eu certamente gosto de ver o que eles têm em suas carteiras. Isso me lembra as caças aos tesouros que papai costumava meter a mim e meu irmão, quando éramos crianças. Mas depois …” – Ela suspirou. “Eu nunca fui boa em esperar.”
Mais golpes. Enderby voltou-se para a seção de negócios. “Ele veio de Albany, e as pessoas que vêm de lá recebem o que merecem. Toque algo, querida. Isso vai animá-lo.”
Então ela pegou sua partitura do banco do piano e tocou “I’ll Never Be the Same.” Então ela tocou “I’m in a Dancing Mood” e “The Way You Look Tonight.” O Sr. Enderby aplaudiu e pediu bis, e quando as últimas notas se afastaram morrendo, os thumps e os gritos do armário a prova de som e reforçado especialmente tinham cessado.
“Música!”, proclamou Enderby. “Tem poderes para acalmar a besta selvagem!”
Isso os fez rir juntos, confortavelmente, como as pessoas fazem quando estão casados há muitos anos e conhecem as mentes um do outro.
¹ Um jackpot é um prémio acumulado em máquinas de cassinos ou em sorteios de loterias (como o Euromilhões, a Mega-sena ou o Totoloto), onde o valor do prémio aumenta sucessivamente com cada jogo efectuado e não contemplado com o prémio máximo. Fonte: Wikipedia
² Katzenjammer Kids (também chamado de The Captain and the Kids) é uma história em quadrinhos, criada pelo alemão naturalizado norte-americano Rudolph Dirks. Foi publicada a primeira vez a 12 de dezembro de 1897, no American Humorist, o suplemento de domingo do jornal New York Journal, de William Randolph Hearst. Dirks foi o primeiro cartunista a representar os diálogos dos personagens através dos chamados “balões” Fonte: Wikipedia
³ doutrina segundo a qual cada faculdade mental se localiza em uma parte do córtex cerebral e o tamanho de cada parte é diretamente proporcional ao desenvolvimento da faculdade correspondente, sendo este tamanho indicado pela configuração externa do crânio; frenologismo.
Professor de Língua Portuguesa e Literatura, graduado em Letras pela UEG (Universidade Estadual de Goiás), pós-graduado em arte/educação pela UFG, viciado em literatura de terror/suspense, amante incondicional de séries e Hq´s e fã de carteirinha do mestre Stephen King desde 1996.
2 Responses
Parabéns pela tradução, e muito obrigado por disponibilizar o conto!
Que bom que gostou Netto. Volte sempre!