UFFI: (s.m.) Um metamorfo maligno. 2. Duplicata de uma pessoa viva, frequentemente atuando como uma espécie de gêmeo malvado. 3. Espécie de golem, ou híbrido mágico/mecânico, patenteado pela North Central Positronics e fabricado nos Dogans de muitos mundos. 4. Qualquer pessoa, espírito ou demônio que assuma a identidade de outro para propósitos malignos.
— do Dicionário de Termos Ocultos do Mundo Médio.
Arthur Eld jamais retornou de sua jornada de caça na floresta de Gilead. Embora seus cavaleiros tenham vasculhado os bosques por semanas após seu desaparecimento, não conseguiram encontrar qualquer sinal do rei ou do seu cavalo, Llamrei. Seguindo os rastos de Llamrei ao longo do solo fofo da floresta sombria, eles chegaram a uma clareira assustadoramente silenciosa no coração da floresta, onde nenhum pássaro cantava — mas todos os rastros terminavam ali. A marca profunda de dois pesados saltos de botas no composto de folhas antes intacto indicava que ali Arthur havia desmontado apressadamente; no entanto, depois de alguns passos, até mesmo as marcas das botas desapareciam. Não havia sinal de que Llamrei havia galopado para fora dali ou sequer houvesse tentado seguir Arthur. Como seu dono, ele havia simples¬mente desaparecido.
Mais ou menos no mesmo momento, o fantasma da rainha Rowena parou de perambular, chorando e suspirando, pelos corredores do castelo. De início, a corte ficou aliviada por se livrar do espectro trágico e do volume horroroso e sangrento que carregava. Porém, quando o rei não pôde ser encontrado, esse alívio logo se transformou em horror. Seria possível que a rainha Rowena e seu aracnídeo bebê canibal não tivessem voltado dos mortos como espectros autômatos, mas retornado para reclamar Arthur? E, se fosse assim, para onde poderiam tê-lo levado senão para as covas de punição de Na’ar, morada dos malditos?
Incenso queimava em todos os altares de Gilead, e sacrifícios eram feitos para muitos deuses do Mundo Médio. As pessoas rezavam para que seu rei fosse libertado das covas de tortura, onde Arthur na certa estava sendo martirizado. Se ao menos eles soubessem o que seu retorno significaria, não o teriam desejado tão ardentemente!
A primeira visão do apavorante espectro de Arthur aconteceu fora da cidade de Pennilton. Um menino, que reunia os rebanhos de seu pai, correu para casa certa noite, com o rosto pálido como casca de ovo, declarando ter visto o rei morto galopando pelas colinas, tão rápido como se o diabo estivesse atrás dele. Só que o Arthur que ele viu tinha a pele da cor de uma carne de dois dias e os olhos vermelhos como o fogo do inferno. Bateram nos ouvidos do menino — tanto por permitir que os carneiros de seu pai dispersassem quanto por contar histórias malignas do rei —, mas o menino choroso não desmentiu sua versão.
Logo outros confirmaram que o rei — agora mais um cadáver ambulante do que um homem vivo ou um fantasma — galopava todas as noites pelo local, esporeando seu cavalo para frente como se estivesse sendo perseguido por um exército invisível. Ele estava sempre silencioso, sempre permanecia montado e sempre aparecia ao cair da noite. As pessoas aterrorizadas ficavam imaginando de que diabos o rei poderia estar tentando fugir, mas logo ficou claro que o único demônio que andava pelo campo era o próprio monarca.
Segundo a opinião geral, a jovem que apresentou as primeiras acusações contra Arthur era uma pessoa confiável. Filha de um fabricante de cerveja, ela havia visto o rei muitos anos antes de sua coroação. Na verdade, ela havia servido graf aos cavalheiros e damas da corte, e por isso sabia muito bem como era Arthur. Declarou sob juramento que o homem que a abordou e à sua filhinha naquela noite fatídica era o mesmo que havia sido coroado mais de uma década atrás, apenas um pouco mais velho. No entanto, embora tenha jurado que seu atacante era Arthur, ela também sustentava que ele havia sido transformado de um bom homem num mostro — da maneira em que um anjo, uma vez amaldiçoado, se tornava um diabrete.
O apavorante rei que ela descreveu usava uma coroa de ferro sobre a testa — uma série de anéis com pedras negras e vermelhas que brilhavam com uma luz fantasmagórica. Seus olhos flamejavam, como havia dito o jovem pastor, sua pele era cinzenta e sua expressão, cruel. Sua montaria, que batia os cascos, relinchava e mordia o freio, já havia começado a se decompor. Suas costelas se projetavam através de seus flancos e o fedor disso era terrível. Mas ainda mais horrível que o cheiro do cavalo em processo de putrefação era o sorriso sádico na face do rei, e o olhar faminto que dirigia à filhinha da mulher. Erguendo sua espada, Arthur puxou com força suas rédeas fazendo Llamrei empinar. Com seus cascos dianteiros, o cavalo escoiceou a jovem no peito e no rosto, arremessando-a de costas no chão. Quando ela tentou se levantar, Arthur cravou a lança em seu estômago. Depois arrebatou sua filhinha chorosa e se afastou a galope.
Dois dias depois que a mulher se arrastou de volta à sua casa, deixando atrás de si um rastro de sangue negro tão venenoso que a grama nunca mais tornou a crescer naquele solo, as pessoas de Pennilton encontraram sua filha morta, com o rosto lívido, no matagal. A gola de seu vestidinho estava vermelha e seu corpo, quase mumificado, de tal modo havia sido drenado de toda a sua seiva. Era como se um deus maligno houvesse respondido às preces das pessoas. Seu rei havia retornado, mas como um monstro sedento de sangue. Antes de transcorrido um mês, o Arthur espectral era o terror do campo. Após o cair da noite, nenhum viajante estava a salvo atravessando as estradas solitá¬rias ou os caminhos das encostas de Nova Canaã. E logo não era apenas Arthur que vagava pelo campo, vitimando cidadãos inocentes. Aqueles afortunados o bastante para escapar das caçadas noturnas do cortejo maligno juravam que Arthur estava acompanhado daqueles seus cavaleiros que haviam morrido em batalha — homens nobres, que haviam dado suas vidas defendendo seu povo de cães de caça, mutantes e feras selvagens. Mas esses nobres cavaleiros haviam ressuscitado para participar desses ignóbeis festins! Era quase como se aqueles que um dia haviam procurado proteger a unidade do Mundo Total agora buscassem destruí-la.
Todas as noites, o rei e seus nobres mortos cavalgavam incessantemente sob a lua sorridente, com a armadura prateada brilhando, como se estivessem caçando em pântanos, campos e florestas. Só que a caça que eles perseguiam não era um veado mutante ou um lobo gigantesco, como havia sido quando eram vivos, mas os aterrorizados cidadãos do Mundo Total. Toda manhã, os carroceiros percorriam o campo buscando corpos em valas, muitos dos quais tinham a carne arrancada de um braço ou mordida numa coxa, como se só o sangue não mais conseguisse satisfazer o mórbido cortejo. Passavam-se ferrolhos nas portas e os portões da cidade se trancavam todas as noites, mas não importava quantos cavaleiros armados e guardas reais patrulhassem o campo, eles não conseguiam derrotar esses inimigos tão poderosos. As poucas unidades que enfrentaram os cavaleiros do rei foram abatidas e tiveram seu sangue drenado; alguns foram colocados em espetos e assados como leitões.
Todavia, apesar das muitas testemunhas confiáveis que juraram que o bando de vampiros era liderado pelo próprio Arthr Eld, ainda havia aqueles que acreditavam firmemente que o monstro que aterrorizava o Mundo Total não podia ser o rei. Aqueles que mais defendiam o bom nome do monarca eram os mais velhos e mais leais companheiros de Arthur: sir Bertrand Allgood e sir Alfred Johns. Embora opostos em físico e temperamento — o inflamado sir Bertrand era alto, magro e tinha cabelos escuros, enquanto o moderado sir Alfred era baixo, atarracado e loiro — os dois eram amigos inseparáveis. Todas as noites, sobre uma caneca de graf, conversavam sobre o horror que havia caído sobre a nação, e sobre os crimes malignos que estavam sendo cometidos em nome de seu amado rei.
Como Arthur, sir Bertrand, e sir Alfred haviam combatido durante tanto tempo as forças das Trevas Exteriores, acreditavam que os monstruosos Grandes do Primal fossem de algum modo responsáveis pelo bando de vampiros bebedores de sangue e comedores de carne que agora aterrorizavam Nova Canaã. E, enquanto a nação cambaleava à beira da total anarquia, os dois decidiram que havia chegado a hora de reagir e enfrentar a maré de escuridão num combate corpo a corpo, mesmo que suas vidas fossem sacrificadas no processo.
Enquanto o poente manchava o horizonte ocidental com o vermelho brilhante do sangue fresco, sir Bertrand e sir Alfred se embrulharam em capas pesadas e em silêncio, mas com celeridade, atravessaram a longa escadaria que conduzia à adega do Grande Salão. Uma vez lá, moveram prateleiras que há duas décadas não eram tocadas, expondo um alçapão conhecido apenas do círculo mais próximo de Arthur. Percorrendo esse túnel subterrâneo, chegaram numa profunda caverna no interior da floresta próxima. Montando os cavalos que uma guarda leal havia deixado ali para eles, cavalgaram até a clareira no coração da floresta, onde Arthur, o rei verdadeiro, havia desaparecido.
Como suspeitavam, marcas de ferradura cobriam a grama e as plantas rasteiras. Mas o que não esperavam encontrar era a coisa da qual se originavam as marcas de ferradura, isto é, uma porta solta de madeira dura. A porta não tinha outro apoio além de seus batentes, que, embora bastante resistentes, pareciam estar fixados no ar. As dobradiças da porta eram de ferro, mas a maçaneta era de ouro filigranado, e continha uma placa de latão sobre a qual estava entalhada uma imagem do revólver de Arthur. Cautelosamente, Sir Bertrand se aproximou. A porta estava trancada. Eles teriam de esperar.
Amarrando seus cavalos, sir Bertrand e sir Alfred se esconderam nos arbustos que cresciam nas margens da clareira. Esperaram até começar a perder as esperanças, mas, finalmente, no ar gelado que antecedia a aurora, ouviram o barulho de cavaleiros se aproximando.
Os demônios que entraram com estrépito na clareira eram tão terríveis de contemplar, que até mesmo os dois cavaleiros endurecidos pela guerra tremeram ao olhar para eles. Seus olhos eram como fogo vivo, sua pele apodrecia sobre os ossos, e seus incisivos eram pontiagudos. O resto de seus dentes irregulares e descoloridos era tão numeroso, que os monstros mal conseguiam fechar os lábios, e em torno de cada cavaleiro pairava uma diabólica aura púrpura, tão escura que parecia quase negra. Porém, por mais medonhos que fossem os cavaleiros, sir Alfred e sir Bertrand reconheceram todos. O bando de vampiros que galopava era composto de seus próprios camaradas mortos, e no comando da tropa estava Arthur Eld, seus lábios cinzentos ainda vermelhos do alimento.
Quando o bando entrou na clareira, o espectral Arthur deu um grito rouco e gutural, e a porta de madeira se abriu. Um por um, os cavaleiros mortos saltaram através do portal, os cascos de seus cavalos brilhando com centelhas azuis de eletricidade estática enquanto penetravam na membrana invisível que separava um mundo do outro. No entanto, pouco antes de a porta se fechar, sem sequer terem tempo para olhar um para o outro, sir Alfred e sir Bertrand saltaram de seu esconderijo nos arbustos e se atiraram através da porta solta.
Girando e caindo, revólver por cima de espada, eles caíram pelo vazio do espaço todash o gordo sir Alfred por cima do magro sir Bertrand, sobre uma estrada seca e rachada que percorria uma paisagem tão tóxica, que nem mesmo ervas daninhas cresciam no solo pedregoso. Arthur e seus cavaleiros eram agora apenas uma nuvem de poeira no horizonte, mas enquanto sir Bertrand praguejava contra sir Alfred, tirando o corpo pesado de seu companheiro de cima de seu peito, a fim de poder respirar, sir Alfred apontou para o céu. Este não continha sol nem lua; nem mesmo estrelas rompiam a monotonia do crepúsculo eternamente cinzento. Onde quer que estivessem, esta versão da Terra havia sido morta por um cataclismo ainda maior do que aquele que havia envenenado o Mundo Médio. Sussurrando uma breve oração a Gan, os dois homens começaram a seguir o rastro de sua presa.
Pouco depois, o Dogan estava à vista. O portão bastante enferrujado que cercava a construção semicilíndrica de ferro amassado havia sido arrancado com violência, embora parecesse que essa vitória havia sido conseguida a um preço descomunal. Espalhados tanto no limiar do portão quanto no chão diante da entrada princi¬pal do Dogan estavam os restos dos esqueletos de soldados uniformizados, alguns vestidos de azul, outros de caqui. Receando fios ocultos e alarmes, sir Alfred e sir Bertrand deram a volta pelo por-tão, finalmente encontrando uma parte da grade onde as barras de ferro haviam sido tão destruídas pela ferrugem, que eles conseguiram com um golpe transformá-las em pó sem muito ruído ou esforço. Uma vez dentro da área, os dois avançaram pela lateral do Dogan até encontrarem uma porta cujas dobradiças inferiores há muito haviam sido reduzidas a nada. Junto conseguiram erguer a porta. E então, deitados de bruços, se arrastaram por baixo dela.
Levou alguns minutos para seus olhos se adaptarem ao interior intensamente brilhante. Espreitando de trás do armário de provetas, tubos de vidro e fios elétricos que felizmente ocultou sua chegada, eles olharam aterrorizados para um dos execráveis laboratórios do Povo Antigo. Do outro lado do aposento, ajustando os diais e os controles de uma enorme máquina, esta¬va um andróide alongado feito de metal. Seus braços e per¬nas eram prateados, seu corpo, dourado, e sua cabeça, de aço inoxidável. A sua esquerda e à sua direita, ligados à máquina pelo que pareciam ser longos cordões umbilicais de plástico, estavam duas incubadoras gigantescas, cada uma suficientemente grande para conter um homem dormindo. Mas o que descansava dentro de cada uma dessas incubadoras era longe de um ser humano. Sob essas redomas de Perspex dormiam golens sem rosto e golens sem olhos, cujos corpos volumosos só superficialmente se assemelhavam aos de seres humanos. Embora parecesse impossível, seus peitos subiam e desciam numa paródia da respiração — como se de um modo ou de outro esses bonecos estranhos estivessem realmente vivos!
Enquanto sir Bertrand e sir Alfred observavam, o andróide realizou um último movimento e então se voltou para eles, com os olhos faiscando um azul-néon. Seus corações deram uma parada — pois estavam certos de terem sido descobertos —, mas por sorte o robô não caminhou na sua direção, em vez disso saindo por uma porta próxima. Sir Bertrand e sir Alfred deram um suspiro aliviado, embora seus suspiros logo tenham se transformado em arfadas. Horrorizados, eles olharam enquanto o andróide entrava empurrando uma maca, amarrado à qual estava o vivo Arthur Eld!
O rei havia sido pesadamente drogado, mas sem dúvida estava bem vivo. Seu pescoço e ombros estavam firmemente enfaixados, como se um osso tivesse sido quebrado e recolocado no lugar, mas fora isso ele estava ileso.
Baixando o lençol que cobria o corpo despido do rei, o andróide expôs o peito nu de Arthur. Depois de ligar fios ao esterno e a peitorais, ele esfregou cada uma das têmporas de Arthur com um líquido amarronzado. Depois, reverentemente, colocou um grande capacete de metal no alto da cabeça do rei.
Enquanto os tetmates horrorizados de Arthur continuavam a observar, os longos dedos prateados do homem de metal digitaram uma série de números no painel de controle da máquina, e depois acionaram um controle com formato parecido com o de um diapasão. O indicador de cada relógio entrava na zona de perigo enquanto as luzes de emergência da sala escureceram e um clarão de luz branca passou ao longo da trança de fios amarelos e verdes que saíam do alto do capacete de Arthur.
O rei gritou. Ao mesmo tempo, os dois horríveis golens começaram a vibrar. Músculos e tendões se retorceram sob sua pele maleável, e os blocos rudes de suas mãos e pés se transformaram em dedos e artelhos. Até mesmo os ângulos planos de seus rostos começaram a ferver, finalmente irrompendo em feições que eram desconcertantemente familiares. Narizes, bocas e pálpebras flácidas transformafam-se em carne. E então aquelas pálpebras se encheram enquanto os globos oculares sob elas tomavam forma, indo e voltando em rápido movimento REM como se duas criaturas estivessem imaginando tomar vida.
Uma cabeleira negra brotou da cabeça daquele que se tornava magro. Fios pálidos irromperam do crânio recém-formado daquele que se tornava gordo. E, quando os dois golens se sentaram, abrindo as tampas de suas prisões de Perspex para que pudessem entrar, nus, mas totalmente formados, no mundo, sir Alfred empalideceu e agarrou o braço de sir Bertrand. “Eles são nós!” — sibilou ele. “O andróide está usando a memória de Arthur para fazer duplicatas nossas!”
Continua…
Escrito por: Robin Furth
Ilustrado por: Richard Isanove
Tradução: Magda Lopes
Revisão e Adaptação: Projeto 19
Veja também:
A História da Torre Negra, Parte I
A História da Torre Negra, Parte II: Árvore de Charyou
A História da Torre Negra, Parte III: A Rainha Fantasma
Professor de Língua Portuguesa e Literatura, graduado em Letras pela UEG (Universidade Estadual de Goiás), pós-graduado em arte/educação pela UFG, viciado em literatura de terror/suspense, amante incondicional de séries e Hq´s e fã de carteirinha do mestre Stephen King desde 1996.
6 Responses
Muito bom
Agora o negócio resolveu andar! rsrs Vlwwww…
História incrível! No site do projeto 19, não tem todas as Hq’s. Quando serão traduzidas as outras?
No momento não temos planos para traduzir as demais Luiz. Essas traduções foram feitas na época em que as hqs ainda não tinha lançadas oficialmente aqui.
Parabéns novamente! Texto incrível, cheio de detalhes.
Fico cada vez mais estarrecido com a riqueza e complexidade da “Torre”!
Que bom que gostou Alexandre. Em breve sairá a próxima parte. Abraço!