Pouca gente (e aqui incluímos até mesmo os leitores constantes) sabe que o universo da Torre Negra não se limita apenas aos 8 romances e um conto publicados por Stephen King no decorrer dos 33 anos que ele levou para escrever a saga de Roland e seus ka-tets. Na verdade, assim como na maioria dos romances fantásticos, há muito mais por trás da aparente superficialidade da série, desde o primeiro livro…

Os oito livros (e um conto) publicados até então possuem diversas camadas cronológicas, múltiplos pontos de vistas narrativos e Steve abusa de artifícios como os flashbacks e as portas que levam os personagens para universos paralelos. O Mundo-Médio, local onde se passa boa parte da história, é repleto de variações culturais, sociais, religiosas, políticas, seres fantásticos (magos, demônios, mutantes, pistoleiros, robôs…), idiomas, divindades, animais, superstições, tudo isso entrelaçado de maneira intrínseca aos outros livros escritos por Stephen King. Ainda que a grande maioria deles não faça parte oficialmente do universo da Torre, você provavelmente encontrará ramificações ou referências a ele em quase todas as obras, direta (como no caso de determinados personagens de outros livros que exercem papéis fundamentais para o desdobramento dos fatos na saga da Torre) ou indiretamente falando. Como os outros universos são “apenas” ramificações do universo onde encontramos a representação física da Torre, podemos concluir que todos os livros de Stephen King estão interligados (alguns ainda são entusiastas da teoria de que todos os seus livros publicados se interligam e que na verdade, durante toda a sua carreira ele vem escrevendo um único livro) ainda que em alguns casos esta característica não se mostre tão clara, como nos livros que antecedem a publicação de “O Pistoleiro”, nos longínquos anos da década de 70. Desse modo podemos ter uma vaga noção da grandiosidade do universo criado por Stephen King e do modo como ele foi injustamente relegado a um segundo plano, visivelmente menos importante, até mesmo pelos chamados “leitores constantes” (a maioria deles, quando questionados, admite nunca terem lido todos os livros que compõem a série). Levando-se em conta a “pouca familiaridade” dos leitores com o assunto, o artigo que segue propõe fornecer a eles uma base sólida através de uma análise um pouco mais aprofundada sobre os aspectos que não foram tão abordados assim nos livros, além de esmiuçar a história da Torre Negra desde os primórdios da criação do universo por Gan (entidade que mais se aproxima do conceito de “Deus” no universo criado por Stephen King), com o intuito de enriquecer de maneira significativa o processo de imersão na leitura da obra.

CAPAS ORIGINAIS DA PRIMEIRA EDIÇÃO BRASILEIRA DOS OITO LIVROS DA SÉRIE, PUBLICADAS ENTRE 2004 E 2013
Capas originais da primeira edição brasileira dos oito livros da série, publicados entre 2004 e 2013

Como trata-se de uma história muita longa (só os manuscritos originais somam mais de 5 mil páginas) o artigo provavelmente será dividido em várias partes. Na primeira delas não haverá spoilers (pelo menos não tão significativos a ponto de estragarem a leitura da obra), já que o que será contado a seguir não está nas páginas dos livros, ou foram fatos citados superficialmente e que aqui serão apresentados de maneira mais detalhada. Como fonte foram usados basicamente os extras nos finais das HQs (boa parte do que acontece antes de O Pistoleiro pode ser encontrada lá) lançadas pela Marvel Comics entre os anos de 2007 e 2013, que apesar de não serem textos do próprio Steve contam como material oficial, da consultora (e autora de outra fonte de pesquisa utilizada na construção dos textos que seguem, “The Dark Tower: The Complete Concordance”) Robin Furth. Infelizmente esse material ainda não foi completamente traduzido no Brasil. Apenas alguns textos foram lançados nas primeiras versões separadas da história, publicadas pela Panini e posteriormente excluídos completamente das versões encadernadas, mas se você é do tipo impaciente e não quer esperar pelos próximos posts, onde as histórias aparecerão de forma cronológica (ou pelo menos o mais próximo possível disso, já que o tempo é uma incógnita no universo de Roland e seus amigos), recomendo que conheça o site que foi o embrião do stephenking.com.br, o “Projeto 19”. Lá você encontrará um vasto material, traduzido, revisado e oficialmente ainda inédito no Brasil, sobre a Torre Negra.

Então recomendo que pegue sua pipoca, sente-se confortavelmente e aprenda um pouco mais sobre o universo (ou universos) da Torre Negra. No mais, desejo a todos longos dias e belas noites!

Uma breve contextualização 

Falando rapidamente sobre o que vocês encontrarão nos próximos posts, futuramente tomarei a liberdade de analisar os livros de maneira separada, levando em conta que cada volume representa uma unidade. Estilisticamente falando eles não são tão diferentes assim (principalmente os três últimos), mas o fato de terem sido editados em períodos tão distantes de tempo só favorece o fato de que é preciso analisar o impacto de cada um deles de maneira distinta (ainda que o todo trate de uma série única), já que refletem diferentes estágios da carreira de Stephen King como escritor. O primeiro volume, como veremos daqui a pouco, é mais filosófico e pretensioso, o segundo contém inúmeras referências oitentistas que o caracterizam como uma obra contemporânea por excelência, o terceiro é  mais futurista e, por conseqüência direta dos fatos, mais distópico. Em contrapartida temos o quarto e quinto volumes (incluo aqui o adicional “As Irmãnzinhas de Eluria”, situado antes mesmo de “O Pistoleiro” e após os fatos de “Mago e Vidro”) que aludem de maneira quase que direta ao universo dos pistoleiros tradicionais, com cidadezinhas de terra batida, sallons de portas duplas e o piano rangendo no fundo do cabaré. No sexto e no sétimo volumes há um quê a mais de ficção cientifica e uma visão futurista e perturbadora em igual proporção, nos relembrando sempre que apesar dos momentos de gloria de Gilead, o mundo realmente “seguiu adiante”. No oitavo (e até então último) livro da série, temos um flashback onde experimentamos um pouco dos três pontos citados anteriormente: a visão futurista decadente, os tempos de gloria de Gilead e a fantasia deliberadamente construída de uma história dentro de uma história, dentro de outra história. Fazendo uma rápida alusão ao segundo volume, é como se cada livro fosse uma porta para uma dimensão artística e literária distinta que, apesar de ainda contar uma única e longa história, não é, por exemplo, como “O Corredor da Morte” que foi escrito em partes, em um curto período de tempo, com o propósito de publicação seriada, onde as nuances criativas não influenciam em praticamente nada. Ironicamente, as diferenças enraizadas nos romances mais atraem do que afastam os leitores. Prova disso é que você está aqui, disponibilizando uma boa parte do seu tempo lendo um texto longo (e por vezes enfadonho, admito) sobre a série.

Sobre “O Pistoleiro”

Stephen King deu inicio ao processo de escrita de “O Pistoleiro” (primeiro dos 8 volumes – e um conto – que compõem a série) muito tempo antes da publicação de seu primeiro romance, “Carrie”, quando tinha apenas 19 anos e estudava na universidade do Maine. Maravilhado, em parte, graças a recente popularização de “O Senhor dos Anéis” na época, ele logo viu-se tentado a criar sua própria fantasia épica, uma história que funcionaria como base para todo o seu universo fictício. Para isso baseou-se não apenas no fascínio atemporal exercido pela obra de Tolkien, como também buscou inspiração em elementos da poesia, mais precisamente no poema épico escrito por Robert Browing (dramaturgo e poeta inglês nascido em CamberWell, Surrey, em 7 de maio de 1812), “Childe Roland to the dark tower came” (para os mais curiosos segue a tradução completa do poema por Fabiano Morais aqui). O título do poema, além de corresponder às últimas linhas dele, é uma referência a obra do dramaturgo inglês William Shakespeare, mais precisamente ao ato III da cena IV da peça “O Rei Lear”.

 “Child Rowland to the dark tower came,

His word was still ´Fie, foh, and fum

I smell the blood of a British man.”

Browing, que afirmou certa vez que concebeu a imagem formada do poema em um sonho, contextualizou a jornada de Roland até a Torre Negra em 34 estrofes de 6 versos cada, com rimas do tipo A-B-B-A-A-B naquele que ficou conhecido como um dos seus trabalhos mais complexos. No título o “Childe” não significa “criança”, como acontece no inglês tradicional contemporâneo, mas trata-se de um termo utilizado para cavaleiros que ainda não haviam passado pelos seus testes de honra, o que sugere que o protagonista Roland provavelmente trata-se do paladino de “A Canção de Roland”, uma narrativa medieval francesa do século 11. No romance de Stephen King Roland também precisa passar por um processo de amadurecimento para fazer valer o seu direito de se tornar um pistoleiro (falaremos mais sobre isso nos próximos posts), além de um teste de honra que irá capacitá-lo a carregar as armas com cabos de sândalo que um dia foram do seu pai.

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Robert Browing (1812 – 1889) por Herbert Rose Barraud

Assim como no livro de Stephen King (…O homem de preto fugia pelo deserto, e o pistoleiro ia atrás.) , o poema de Browing tem início com as especulações do protagonista acerca daquele que o encaminha para a Torre Negra. Enquanto King expõe a faceta enigmática do “Homem de preto” (falaremos sobre ele um pouco mais adiante) logo nas primeiras páginas de “O Pistoleiro”, Browing o faz de maneira mais clara já nas primeiras linhas do poema, quando diz:

Primeiro pensei: ele mentiu a cada sentença

O coxo encanecido, com olhos cheios de malícia

Ávidos por ver nos meus de sua mentira a perícia

E com a boca sem conter a alegria intensa

Que repuxava seus cantos na crença

De que o predador outra vez se sacia.

Boa parte do poema de Browning é centrado na perspectiva do herói buscando a redenção e no modo como o código militar de honra e glória pode destruir a vida interna do pretenso herói.  Neste contexto, que também é abordado no decorrer da série de Stephen King, a torre funciona como Objetivo primordial, a essência da existência de Roland (no livro de king um Pistoleiro implacável), ao passo que também é sua condenação. O herói só encontrará sua satisfação pessoal, sua redenção, quando alcançar seu objetivo maior, A Torre Negra, independente do que tenha que fazer ou de quem tenha de enfrentar para chegar até ela. Sob esse aspecto, a linha que separa a perseverança heróica da insanidade egoísta é tão tênue que praticamente não existe. Essa falta de auto-coerência persiste tanto no Roland de Browing quanto no de King, que mostra uma obstinação por vezes irracional, principalmente se levarmos em consideração que o código ético e moral dos Pistoleiros de Gilead alude principalmente ao racional como fonte de inspiração primária.

“Eu não miro com a mão; aquele que mira com a mão esqueceu o rosto de seu pai.

Eu miro com o olho.

Eu não atiro com a mão; aquele que atira com a mão esqueceu o rosto de seu pai.

Eu atiro com a mente.

Eu não mato com a arma; aquele que mata com a arma esqueceu o rosto de seu pai.

Eu mato com o coração.”

Diferente do romance de Tolkien, por exemplo, onde há claramente uma perspectiva nobre por trás da necessidade de destruir “O um anel” nas chamas da montanha da perdição em Mordor, ainda que haja um leve indício de nobreza por parte do último residente de Gilead em sua missão de chegar até a torre, todo o resto padece em meio a sua necessidade desenfreada de alcançar seu objetivo. O próprio Stephen King, cuja intenção inicial ao escrever “O Pistoleiro” era dar início à sua apoteose literária, seu épico moderno, enfrentou dificuldades neste aspecto. Ao dar vida, ao contextualizar o Pistoleiro em um universo fantástico, mas ao mesmo tempo decadente e realista, ele colaborou, (provavelmente de maneira inconsciente, já que sua intenção era exatamente o oposto) para que o tom épico de sua obra fosse ofuscado, e que ela se igualasse em magnitude a outras obras do gênero mais em tamanho físico, com suas mais de 5 mil páginas, do que no âmbito crítico, o que, é claro, não minimiza o valor da obra, muito pelo contrário. Com o auxilio da constante inserção de elementos da cultura popular contemporânea, o aspecto crível do romance ganhou em verossimilhança o que perdeu em seu tom épico. É como se a decadência do universo de Roland extrapolasse as fronteiras das páginas escritas por King e criasse ramificações no universo real. Não há aqui a tolerância heróica do protagonista. Roland Deschain não possui atrativos físicos, não é um nobre bondoso e sua busca pela torre, como já foi dito anteriormente, não está ligada diretamente a motivos nobres (ainda que épicos não precisem necessariamente de motivos nobres para simplesmente serem). Ao longo dos 8 livros que compõem a série não há mortes gloriosas ou grandes conquistas, todas elas foram relegadas a um passado de lendas, que é raramente mencionado na série e que diz respeito aos antepassados da linhagem do Eld, como Arthur e Merlin (uma versão alternativa das narrativas medievais). O tom épico da Torre Negra permanece apenas nas lendas Arthurianas, que justamente pela brevidade como são apresentadas na história não conseguem sustentá-lo no decorrer dos oito livros.

Enquanto para críticos literários como Margaret Atwood, “Childe Roland” é o próprio Browing, manifestando e enxergando a Torre como sua missão de escrever o poema, o próprio King admitiu que escrever os sete volumes (que posteriormente se transformariam em 8) de sua série mais ambiciosa também tornou-se uma missão épica. Muito provavelmente por isso ele demorou tanto (mais precisamente 33 anos) para concluir sua principal obra, o que colaborou tanto quanto ajudou na construção de seu universo ficcional, como já foi dito anteriormente.

Ainda sobre “O Pistoleiro”

O primeiro livro, “O Pistoleiro” foi publicado originalmente, pela primeira vez, em cinco histórias diferentes na revista de ficção cientifica The Magazine of Fantasy and Science Fiction de 1978 até 1981. Em 1982 os cinco capítulos (O Pistoleiro, O Posto de Parada, O Oráculo e as montanhas, Os Vagos Mutantes e O Pistoleiro e o Homem de Preto) foram relançados em forma de livro, que recebeu o mesmo título do primeiro capítulo, “O Pistoleiro”, numa edição limitada. Apenas em 1988 o romance foi publicado em massa. Desde então ele foi relançado por diversas vezes e em vários formatos diferentes (incluindo os boxes com os demais volumes da série). Entretanto, em 2003, com o lançamento dos últimos volumes da série, King deu início ao processo de revisão, alterando, incluindo e excluindo alguns trechos de “O Pistoleiro”, para que o romance original se mantivesse coerente com os demais (ainda falaremos um pouco mais adiante sobre essas diferenças).

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Capas de “The magazine of fantasy and Science Fiction” onde foram publicadas as cinco partes de “O Pistoleiro”

Com cerca de 9 mil palavras incluídas, nesta versão (na qual a tradução brasileira baseou-se) há ainda um extenso prefácio, como é comum nas demais obras do autor, onde ele explicita os motivos que o levaram a dar início à obra e do lançamento de uma nova edição revisada.

Quando tornei a olhar para o primeiro volume, que agora você tem em mãos, três verdades evidentes se apresentaram. A primeira foi que O Pistoleiro havia sido escrito por um homem muito jovem e tinha todos os problemas do livro de um homem muito jovem. A segunda foi que con­tinha uma grande quantidade de lapsos e falsos pontos de partida, parti­cularmente à luz dos volumes que vieram depois.* A terceira foi que O Pistoleiro não era sequer parecido com os últimos livros — era, francamen­te, um tanto difícil de ler. Com muita frequência eu me ouvia me descul­pando por ele, dizendo que, se as pessoas perseverassem, veriam a história encontrar sua verdadeira voz em A Escolha dos Três.

Mesmo com a revisão, e ainda que a coerência entre os romances tenha sido mantida graças a ela, ainda há discrepâncias estilísticas significativas, principalmente entre o primeiro volume e os demais, em partes (como pode ser visto anteriormente, admitido pelo próprio King em seu prefácio) devido a sua pouca maturidade. Neste âmbito, “O Pistoleiro” apresenta-se como um livro bem mais denso e filosófico, com uma pretensão literária visivelmente maior, típica dos desejos irrefreáveis da juventude, da necessidade latente (e relativamente comum aos pretensos “novos” escritores) em produzir uma obra que se igualasse em magnitude às que o próprio escritor admira como leitor.

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Primeira edição de “O Pistoleiro” autografada por Stephen King e Michael Whelan, artista responsável pelas ilustrações do livro

Outro fator, além dos já citados anteriormente, que aparentemente colaborou para que a linearidade literária dos sete volumes fosse de certa forma “quebrada” foi o acidente sofrido por Stephen King em 1999, quando ele foi atropelado por uma van enquanto caminhava nos arredores de sua casa, no Maine. No prefácio de “O Pistoleiro” ele fala um pouco mais sobre isso e sobre o modo como isso afetou a produção dos últimos três volumes da série, quando diz que se sentiu impelido a continuar o trabalho que começara vários anos antes e terminar antes que fosse tarde demais. Como resultado, os últimos três livros da longa série parecem padecer de uma certa ansiedade, uma pressa em concluir um trabalho que vinha sendo lapidado, como manda o bom artesão, de maneira cautelosa e por vezes exageradamente demorada. O quarto volume quase inteiro, por exemplo, é cuidadosamente dedicado ao passado de Roland e ao modo como os fatos traumáticos ocorridos em sua longa vida como Pistoleiro influenciaram sua busca pela Torre Negra. É justamente neste volume que descobrimos o cerne da busca de Roland, que, apesar de revelado parcialmente (sabíamos que ele estava em busca da Torre e do Homem de Preto no primeiro volume e nos foram fornecidos lapsos de lembranças que remetiam aos tempos idos da grande Gilead e aos feitos dos Pistoleiros, mas tudo era ainda muito vago até “Mago e Vidro”) só aparecem por inteiro no quarto volume. A impressão que fica, como já foi dito anteriormente, é que esse tipo de apresso, esse tipo de cuidado com os detalhes, foi relegado a um segundo plano nos três livros que se seguiram e deu lugar à necessidade de terminar uma obra que, em outras ocasiões, sem o temor constante do futuro incerto, provavelmente poderia ser melhor lapidada. O penúltimo volume, “Canção de Susannah”, por exemplo, apresenta poucos fatos realmente relevantes para o desenrolar da trama e funciona mais como um gancho quase desnecessário para o sétimo e então último livro. O oitavo livro (lançado apenas recentemente com o título de “O Vento pela Fechadura”), por sua vez, apesar de visivelmente interessante, principalmente para nós fãs, funciona mais como um flashback saudosista do que uma “continuação” em si. Tudo bem que o próprio Steve o considera como uma Torre Negra 4.5, mas a trama, em si, não acrescenta nada à história, com uma única exceção: Em “The Wind Trough the Keyhole” compreendemos um pouco melhor o relacionamento conturbado entre Roland e sua mãe e quais foram as ramificações que esse relacionamento (ou a falta dele) gerou no futuro do então mais jovem Pistoleiro de Gilead.

O Início de tudo 

Analisados alguns aspectos críticos da série (de maneira muito superficial, admito, mas para o azar de vocês ainda voltaremos a falar sobre isso muito em breve), vamos ao que realmente interessa. O que veremos agora é um resumo de como tudo se desenrolou, até o ponto de início dos livros, quando nos deparamos com o Pistoleiro e sua já famosa frase de abertura:

O Homem de Preto fugia pelo deserto e o Pistoleiro ia atrás… Entretanto, muito antes disso, muito antes que o Pistoleiro, o Homem de Preto e até mesmo a própria Torre Negra existissem, havia o nada. Não existiam múltiplos universos e a própria existência era um conceito um tanto quanto complicado de se assimilar, mas existia algo além do nada: O primal, a sopa primordial da existência, que escorria lenta e faminta, como uma ameba gigante devorando o nada. E assim foi durante muito tempo (se é que o conceito de tempo também pode ser aplicado aqui), até que o primeiro ser oriundo do Primal surgiu. Não havia nome, afinal também não havia qualquer criatura apta (ou não) a batizar o primeiro, o único, entretanto com o tempo chamaram-no de Gan, o deus vivo, o espírito da Torre Negra. Imponente de uma maneira quase indescritível, a medida em que ele emergia, de seu corpo emanava uma grande “sacada” ogival de doze cores: carmesim, laranja, amarelo, rosa, azul-escuro, verde escuro, índigo, verde claro, azul celeste, violeta, marrom, cinza perolado e no centro um espaço negro vazio, a imensidão obscura do Todash.

Enquanto Gan se esticava mais alto, a magia do primal se derramou, tecendo aos poucos a existência, o universo e a própria Torre. A medida em que a Torre crescia em altura cresciam também os múltiplos universos ligados a ela. Universos que foram unificados como contas de um colar em um único ponto, a própria Torre Negra. Surgiram os deuses, os velhos astros, o sol e a lua, e com eles criaturas obscuras, oriundas daquele mesmo espaço negro e vazio. Criaturas terríveis, com pinças como garras e bocas com dentes de tubarão, monstros tentaculares, com corpos de lulas e centopéias gigantes e alguns outros simplesmente indescritíveis aos olhos humanos. A confusão interestelar durou até o momento em que o Primal mágico, tendo feito sua parte na criação do universo, começou a recuar, levando junto com ele alguns destes monstros e deixando outros nos lugares vazios que haviam sobrado da existência. Estes se adaptaram e prosperaram e com o tempo chegaram até mesmo a parecerem com os homens. Entre estas criaturas havia uma de especial astucia, que apesar da aparência, não era, de forma alguma, humano. Seu nome era Merlim, um agente do Primal, uma criatura da magia em seu estado bruto.

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Merlim e suas esferas mágicas

O poderoso mago Merlim foi o primeiro a ensinar ao povo do Mundo-Médio sobre a magia e suas aplicações práticas, ensinando-os a construírem portas que levavam para outras dimensões no tempo e no espaço e estações experimentais que mesclavam magia com tecnologia, que o povo do Mundo-Médio chamou de “Dogans”. Lá foram criadas as primeiras armas de aniquilação e um poderoso “Imperium” surgiu, reclamando para si a pose de todo o continuum espaço-temporal. Não demorou para que as ambições do Imperium se tornassem maiores e eles decidiram conquistar o fulcro da existência, reconstruindo a Torre Negra, centro de todo o universo. Entretanto, ao chegarem na Torre se depararam com algo que eles não esperavam: A Torre mais imponente que eles sequer podiam imaginar estava diante deles e era feita de carne endurecida. Não se deixando impressionarem a ponto de terem seus planos descartados, eles deram inicio ao trabalho de reconstrução, mas quando a primeira bola atingiu os alicerces da Torre o chão foi sacudido por um enorme tremor e o feixemoto abriu na terra uma imensa fissura, de onde saiu, além de uma densa nevoa amarela, uma criatura, um dos grandes que havia sido confinado no espaço Todash. Como efeito colateral, desde então, no Mundo-Médio inteiro Luminas cheias de monstros se abriram, como feridas causadas na pele da existência.  O Imperium se fragmentou, homens culpando uns aos outros tentaram fugir das danações provocadas por seus erros, mas não havia para onde correr.  Animais e plantas sofreram mutações e o Mundo-Médio foi reduzido a uma terra devastada pelo caos, ao som das gargalhadas de Merlim.

Apesar de tudo, A Torre sobreviveu. Gan, o deus da Torre, se apiedando pela primeira (e provavelmente última vez) com sua criação, deixou que uma gota de seu sangue caísse por sobre a Torre que tivera seus alicerces rachados e pendia para um dos lados. Na base da terra para onde a gota escorreu nasceu uma rosa. Cor-de-rosa por fora e vermelha com o maior de todos os vermelhos do lado de dentro, ela também tinha o centro amarelo como o sol. A rosa iniciou seu canto e mais rosas começaram a brotar, muitas e muitas outras nasceram, até que a Torre se viu cercada por um vasto campo de brotos harmônicos e como resultado se endireitou. As nuvens tóxicas do Mundo-Médio se abriram e os monstros oriundos das águas profundas do Primal começaram a recuar. A terra e a sociedade humana prosperaram, curando-se e fortalecendo-se.  Líderes do Mundo-Médio se juntaram e fortaleceram alianças,  um criando baronatos e fundando a confederação. Os homens da lei expulsaram os mal feitores e arruaceiros e construíram represas para conter o avanço das águas remanescentes do Primal e durante este período de lutas, um jovem guerreiro tornou-se conhecido por sua astucia e coragem, além de sua incrível habilidade em inspirar confiança nos seus seguidores. Seu nome era Arthur Eld.

Arthur Eld portava, diferente dos seus inimigos, uma nova e poderosa arma. Os antigos chamaram-na de revolver, e com ela Arthur venceu todos os seus inimigos e tornou-se grande entre o povo do Mundo-Médio, expulsando a magia e reclamando de volta a terra dos homens. Merlim, por sua vez, via isso tudo, a reestruturação dos homens, Gilead sendo reerguida das cinzas, a magia sendo expulsa, com péssimos olhos.  Tudo isso aflorou novamente no mago imortal o sentimento de insatisfação para com a falta de caos e ele decidiu agir novamente. Sob as margens do Primal, através de um sussurro mágico e poderoso em igual proporção, Merlim criou as doze esferas, tecidas do fio da própria magia branca, cada uma com um dom específico (levitação, telepatia, transporte entre múltiplos universos, entre outros…), além de uma última, completamente negra, feita da verdadeira essência do mal. Em cada um dos treze globos Merlim colocou uma maldição e a aparente prosperidade que eles trariam nada mais era do que simples e puro mal disfarçado.

Arthur Eld
Arthur Eld

Merlim continuou seu plano diabólico invocando seus irmãos do Primal para que juntos, disfarçados de humanos comuns, fizessem uma viagem até o centro da reestruturada Gilead, onde poderiam finalmente se vingarem daqueles que os prenderam e os expulsaram. Do fundo do Primal eles obedeceram, e a medida em que foram surgindo, seus corpos de insetos se transmutavam em homens e mulheres da mais bela estirpe. Com suas lanças envenenadas e o estandarte do caos, eles vieram aos muitos, mas o último deles, sem dúvida, era o mais imponente e assustador; uma criatura peluda, vermelha, de oitos braços, que transformou-se quase que instantaneamente em uma mulher com um longo vestido de seda rubra, que, de mãos dadas com Merlim, caminhou até Gilead, levando atrás deles um séquito de criaturas inumanas em formas humanas.

Em Gilead as festividades já haviam começado, e enquanto Arthur cavalgava, imponente, em com coloridos fogos de artifício, a música e dança se faziam ouvidos em quase todo o reino e as janelas estavam agora enfeitadas com a nova coroa do Mundo-Total, as treze gemas coloridas que vieram em substituição para cada feixe que dá para a Torre Negra. No palácio o novo rei, Arthur Eld, fora coroado por Sir Kay Deschain, jurando sua vida e a vida dos seus descendentes a proteger a Torre Negra. Arthur Eld, o homem que pusera fim aos dias ruins e trouxera os tempos de gloria agora era o senhor magnânimo do Mundo-Total. Foi então que, antes mesmo que findassem as festividades, fez-se o silêncio completo nas ruas. Não demorou para que do silêncio espectral surgissem o som de flautas e alaúdes. Do lado de fora os cidadãos assustados abriam caminho para uma comitiva de visitantes ricamente trajados. Na frente deles vinha um mago tão antigo quanto tudo o que se pode dizer que é antigo. O mago prostou-se em frente à sacada principal do castelo do novo rei e proclamou a novidade: As criaturas do Primal se rendiam ao novo senhor do Mundo-Total e ali estavam em uma missão de paz, trazendo presentes como prova de suas boas intenções.

Arthur recebeu o mago e seus presentes: Doze esferas mágicas que trariam paz e prosperidade a seu reino. O rei ficou encantado com as esferas, porém, na medida em que segurava cada uma delas, suas feições e a de seus conselheiros começaram a mudar, de maneira quase que imperceptível. Talvez alguns sábios mais atentos provavelmente notariam que a generosidade naquele momento dera lugar à ganância, a confiança ao receio, a coragem ao medo… E quando Arthur ergueu a bola laranja (aquela que futuramente seria conhecida como Toranja de Merlim) ele pode ver, num lapso de tempo curto, mas igualmente cruel, os rostos transfigurados dos de sua corte, que haviam passado de bondosos cortesãos para desonestos e traidores. Nem mesmo sua rainha Rowena, que outrora ele vira como a pessoa mais bela e bondosa de todo o reino, escapara ante a suposta fúria reveladora da esfera, transformando-se em uma bruxa de feições aterradoras. O próprio Arthur não era mais o mesmo que subira ao trono e começara, aos poucos, a se tornar uma pessoa desconfiada, impaciente e grosseira.

Arthur talvez não tivesse percebido (mas ambos sabemos que lá no fundo, no seu subconsciente de pistoleiro nato, havia a semente da desconfiança que fora plantada, ainda que não houvesse germinado por completo), mas Sir Kay, seu conselheiro, percebeu. Desde o início ele suspeitara que os agora convidados do rei haviam trazido algo mais do que supostos belos presentes. Como resultado, o banquete que deveria ser civilizado e cortes descambou para um verdadeiro pandemônio festivo, com mulheres que tiravam os sapatos e levantavam as saias, homens que se embebedavam e jogavam pedaços de carnes para os cachorros só para verem eles se digladiarem, tudo isso constantemente ignorado pro Arthur, que passara a ter olhos apenas para a conviva de Merlim, A Rainha Rubra do Primal.

Quando a noite chegou e todos foram dormir, Sir Kay levantou-se para espionar os convidados e tentar descobrir se seus receios tinham realmente algum fundamento. Infelizmente eles tinham e o que ele viu foi um verdadeiro show de horrores. Os convidados haviam se despido de suas fantasias humanas e agora revelavam-se como grandes monstros insetoides que andavam por entre os convidados, alimentando-se dos que estavam (e a maioria estava) desmaiados pela embriagues. Mas a cena pior ainda estaria por vir. Quando Sir Kay foi de encontro a Arthur ele o encontrou nos braços da Rainha Rubra, que agora se transfigurara numa aranha vermelha gigante.

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Rainha Rowena vista através da Toranja de Merlim

Sir Kay atacou e perfurou a aranha com sua espada. Mesmo ferida mortalmente ela revidou e mordeu o conselheiro do rei, antes de fugir com seu sangue negro queimando a grama por onde ela passava.

Muitos homens bravos foram perdidos naquele dia e quando os cortesãos acordaram eles choraram e lamentaram pela morte dos seus. Encontraram o rei inconsciente no jardim, ao lado do corpo do seu bravo conselheiro que tombara em batalha, com a ferida ainda emanando um veneno negro e podre.

Arthur ordenou que as doze esferas fossem destruídas, mas como ele logo descobriu, isso era impossível.Sendo assim elas foram confinadas nos confins mais inexplorados do Mundo-Médio, numa caverna secreta onde, obviamente, elas não permaneceram por muito tempo. Seu brilho mágico atraiu ladrões e saqueadores e não demorou para que as esferas mágicas de Merlim se perdessem pelo mundo.

Um ano inteiro se passou e enquanto a rainha Rowena permanecia estéril, das entranhas da rainha Rubra nasceu uma criatura tão vil e cruel quanto a própria Rainha Vermelha. Uma criança-demônio que era ao mesmo tempo homem e aranha, que se declarou, por direito, herdeiro do rei Arthur. A nova criatura estava indissociavelmente ligada à Torre Negra, porém, enquanto uma criança humana provavelmente juraria, assim como Arthur, defender e cuidar da Torre, o Rei Rubro, motivado pelo mal inerente que nascera junto com ele, jurou destruí-la.

Mas, como diz o velho ditado, o KA é como uma roda e as rodas estão sempre girando, assim como a sorte (seja dos bons ou dos maus). Merlim teve uma revelação em sua caverna e nela ele viu que a prole da Rainha Rubra prosperaria e espalharia um novo caos por sobre a terra, mas que um dia um herdeiro legitimo da linhagem do Eld se ergueria. Um mortal que seria marcado pela escuridão como uma criatura mágica e que perseguiria os servos do Primal durante eras e diferentes realidades. Uma criança que chamariam de Roland, o último guerreiro do branco que estaria destinado a destruir as trevas exteriores. Um homem que se não fosse detido mataria o Rei Rubro e reinaria para sempre no poder do Primal.

Assim dizia a profecia, mas muitas outras coisas ainda aconteceriam antes do dia do acerto de contas, e é sobre essas coisas que os nossos próximos posts vão falar. Portanto, não percam a segunda parte de “A HISTÓRIA DA TORRE NEGRA”.

A História da Torre Negra, Parte II: Árvore de Charyou

 

Ps: Texto adaptado do original “O Arco-Íris de Merlim” por Robin Furth
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10 Responses

  1. Achei muito interessante esta primeira parte da história da Torre Negra. Valeu. Gostei muito.

    Quando teremos a continuação? Já tem data?

    Abraços.

  2. realmente uma história muito boa,porém o que eu mais gostava na torre negra era aquela sensação que o mundo-médio poderia ser o nosso mundo milhares de anos a frente como quando eles chegam a cidade de lud. creio que tensão criada a partir do segundo livro somado a um universo fantasticamente misterioso e vasto culminaram na minha perseverança em ler os 7 volumes, por que na minha opinião a saga perdeu o “espirito” em lobos de calla.

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