Como em toda sociedade em que poucas crianças nascem saudáveis e que, menos ainda, são as que alcançam a idade adulta, a cultura do Mundo-Médio está repleta de rituais e costumes criados para proteger os recém-nascidos. Enquanto alguns desses costumes são pragmáticos e celebratórios como colocar uma presilha de cedro sobre o tet-ka can Gan ou umbigo do bebê, logo depois do cordão umbilical ser cortado outros são puramente místicos ou religiosos. E, de todos os rituais mágicos executados depois que uma criança saudável vem ao mundo, o mais difundido é de Invocação dos Guardiões…
Do momento que a criança respira pela primeira vez até que ela esteja velha o suficiente para cuidar de si mesma, seu khef, ou sua força vital, está particularmente vulnerável para os seres invisíveis que sugam a energia dos humanos. Esses demônios – comumente conhecidos com espíritos-da-doença – são muito poderosos e só podem ser impedidos de enfraquecer e até mesmo roubar a alma da criança se ela receber a bênção dos doze Guardiões. Ou seja, a bênção dada às crianças através da Invocação dos Guardiões trata, na verdade, de protegê-las do invisível e maligno mundo dos Demônios Elementais. Por causa disso, o entendimento das formas e das funções tanto dos Guardiões quanto dos Elementais é necessário para que se compreenda a importância emocional e religiosa do ritual de Invocação.
Assim como no caso da Torre Negra, cuja origem tem sido discutida pelos sábios há vários séculos, ninguém sabe ao certo quando os Guardiões do Feixe vieram à existência. Da mesma forma, há muitas controvérsias sobre os Guardiões serem criaturas físicas, forças mágicas/espirituais, ou ambos. Muito séticos sustentam que os enormes animais totêmicos às vezes vistos nas regiões mais distantes do Mundo Médio não passam de ciborgues construídos pelo Povo Antigo como redenção pelos grandes males que sua cultura havia causado à Terra. Em favor dessa teoria, eles mencionam os controversos esboços recentemente descobertos nas ruínas de um dos Dogans – ou centros de controle militares – da North Central Positronics, nas fronteiras com o Ultimo-Mundo. E também citam as antigas descrições de Shardik, o Guardião Urso, que, séculos atrás, era freqüentemente visto vagando pela longínqua Grande Floresta do Oeste. De acordo com essas descrições, o Guardião Urso media mais de vinte e cinco metros e possuía um pequeno prato rotatório – provavelmente um radar – no alto da cabeça (Referências a estes radares podem ser encontradas em várias lendas relacionadas aos Guardiões. Em todas elas, esses radares são chamados de “pensadores” e têm a reputação de conter um segundo cérebro que, telepaticamente, liga o indivíduo à consciência coletiva da Torre Negra).
Apesar de todas as evidências apresentadas pelos séticos quanto à origem mecânica dos Totens do Feixe, para a maioria dos devotos cidadãos do Mundo-Médio, a descoberta dos ciborgues Guardiões do Povo Antigo não depõem contra a existência da verdadeira magia e dos Totens imortais. Para esses crentes, os ciborgues são os equivalente mecânicos dos pequenas cah-tah de pedra, ou pequenas deuses, entalhados na forma dos animais sagrados do Feixe. Tanto como robôs gigantes quanto como pedaços de pedra, ambos são essencialmente mágicos, criados para concentrar e armazenar a tremenda força protetora irradiada pelos verdadeiros Guardiões que existem fora do tempo e do espaço e além das flutuações do ka. É para esses animais sagrados que o povo do Mundo-Médio dedica suas crianças, e é deste ato de recolher a energia dos Guardiões em objetos mundanos – ciborgues, cah-tah, máscaras espirituais – que o ritual de invocação depende. Assim que as crianças do Mundo-Médio tem idade para desenhar, elas são ensinadas a esboçar um mapa da terra. Este mapa se parece com um relógio, mas, no lugar dos numeros, fica um X que designa um dos portais de entrada e saída do Mundo-Médio. Cada um desses portais é protegido por uma fera gigante, conhecida como Totem ou Guardião. Partindo da casa das doze horas, no sentido horário, temos o Elefante, o Rato, o Morcego, a Águia, o Cão, a Tartaruga, o Lobo, o Peixe, a Lebre, o Leão, o Cavalo e o Urso. Cada Guardião tem o seu par no extremo oposto do disco – o Elefante com o Lobo, o Rato com o Peixe, o Morcego com a Lebre, a Águia com o Leão, o Cão com o Cavalo e a Tartaruga com o Urso. Por cada totem, passa um Feixe, como um grande fio de alta-tensão mantendo a gravidade e o alinhamento correto do tempo, do espaço, do tamanho e das dimensões. No centro do mapa, onde todos os Feixes se cruzam, fica a própria Torre Negra, o enlace do continuum tempo-espaço.
Como qualquer criança do Mundo-Médio pode lhe dizer, a Torre Negra se ergue até o infinito e, perpendicular a ela, existem incontáveis realidades paralelos. E, apesar de cada criança saber que é especial, ela sabe também que, em pelo menos um dos níveis da Torre Negra, vive uma outra criança que é praticamente idêntica a ela e ocupa uma casa praticamente igual a dela. Ela também sabe que é o trabalho dos guardiões manter essas realidade simultâneas separadas – em outras palavras, impedir que os pares ou gêmeos se encontrem – mas também manter as múltiplas realidades unidas, para que a Torre Negra continue de pé.
De todos os Guardiões, o favorito dentre as crianças tende a ser a Tartaruga, conhecido como Maturin. De acordo com o folclore do Mundo-Médio, depois de Gan ter dado a luz ao mundo, ele quase o derrubou no abismo. Quem o salvou foi Maturin, que o segurou em seu casco. De acordo com a popular cantiga de ninar, o mundo ainda se equilibra sobre as costas de Maturin: “Vejam que grande Tartaruga! Em suas costas repousa o mundo. Seus modos são lentos, mas sempre gentis. Ele nos sustenta com sua mente. Sobre seu casco, fazemos nossas promessas: E ele vê quando falamos a verdade. Ele ama a terra e ama o mar. E ama crianças como eu!”
II. DEMÔNIOS ELEMENTAIS
O primeiro chão rochoso foi formado pela pura magia dos Primal. Erguendo-se do seu centro, como uma enorme árvore feita de pedras, emergiu o corpo de Gan, que se parecia como uma torre cinzenta. Ao redor da barriga de Gan, em espiral, como olhos ou janelas, cada uma das quais brilhando em uma pálida luz azul, derivada do próprio brilho opalescente do Primal. Do seu ápice, como o olho de um Ciclope, estava a grande janela de Oriel. Ela tinha doze cores – vermelho, alaranjado, amarelo, verde escuro, azul escuro, indigo, violeta, azul claro, verde pálido, lilás escuro, marrom e acinzentado. Mas seu centro circular era negro.
Irradiando da cabeça de Gan, como uma hidra gigante, haviam seis Feixes magnéticos. Uma vez que esses feixes se cruzam na coroa de Gan, ela assume a forma de doze implacáveis apêndices. Esses doze braços logo se ancoraram às bordas do mundo, às margens do próprio Primal. E das águas do Primal, emergem doze Guardiões, totens de animais que deveriam guardar as terminações dos Feixes, que, simultaneamente, eram portais de entrada e saída do Mundo-Médio. Mas, quando os doze Guardiões surgiram – Urso e Tartaruga, Elefante e Lobo, Rato e Peixe, Morcego e Lebre, Aguia e Leão, Cão e Cavalo – eles trouxeram das profundezas do Primal suas versões sombrias, os doze Demônios dos Feixes, criados para dominar o mundo dos demônios, doenças, pragas e pestilências que tem afligido a humanidade, desde então.
Assim como o brilho da luz inevitavelmente cria sombras, o nascimento dos Guardiões inevitavelmente deu origem a seus apostos, os Demônios dos Feixes, também conhecidos como Demônios Elementais. Assim como cada Feixe tem o seu Guardião, que garante o bem-estar do mundo mortal, cada Feixe tem também o seu lado sombrio. E, ligado a essa sombra, está um Demônio Elemental hermafrodita, que vigia o mundo invisível dos demônios, fantasmas e espíritos-da-doença. Apesar de existirem doze Guardiões, há apenas seis Demônios Elementais. Entretanto, cada Demônio Elemental possui um aspecto masculino e outro feminino, cada um dos quais guarda uma terminacão dos Feixes. Por causa disso, cada portal de entrada e saída do Mundo-Médio tem um lado dedicado aos Brancos e outro consagrado às Trevas Exteriores. De acordo com o folclore do Mundo-Médio, é por meio desses portais dedicados às Trevas Exteriores que os espíritos-da-doença viajam. Através da invocação dos Guardiões, os pais procuram cercar suas cnancas com a protecão dos Brancos, e, fazendo isso, impedir qualquer espírito-da-doenca – que, por natureza, é uma criatura das trevas – de chegar perto para afligi-las.
INVOCAÇÃO DOS GUARDIÕES
Durante os primeiros dezenove dias de vida do bebê, quando a lua se tornar cheia e o clima estiver limpo, o feiticeiro da corte ou dash-dihn* (*Lider Religioso) local leva o recém-nascido para um campo aberto. Ele é acompanhado pela família da criança e os parentes mais próximos, e leva consigo uma taça de vinho sagrado e doze máscaras, cada uma representando um Guardião. Sob a lua, o feiticeiro traça no chão um círculo de giz, com um diâmetro entre doze e catorze pés e marca um X nos quatro pontos cardeais. Entre cada uma dessas marcas, ele faz mais dois Xs, totalizando doze marcações. De pé, no centro do círculo, junto dos pais da crianca, o feiticeiro proclama sua bênção. Erguendo o bebê sobre sua cabeça, ele invoca os deuses para testemunhar seu ritual – S’manna, que cura os corações; Gan, provedor da luz; Chloe, que fortalece os homens; Dama de Oriza, deusa da vida e do fôlego; e todos os can callah, ou anjos da Terra. Então, ele invoca os Guardiões do Feixe – os totens antigos que têm vigiado os caminhos do mundo invisível desde tempos imemoriais. Ele ora para que eles possam iluminar os Portais com a poderosa luz dos Brancos, para que os demônios das sombras fiquem cegos e também pede para que o bebê seja protegido das legiões das Trevas Exteriores que surgem com os ventos, trazendo dor e morte.
Enquanto os pais derramam libações sobre cada um dos doze Xs, pedindo aos deuses para se juntar a eles, um parente, usando a mascara do Guardião apropriado, se aproxima. Para a marca do norte vai o Elefante, seguido, no sentido horário, pelo Rato, o Morcego, a Águia, o Cão, a Tartaruga, o Lobo, o Peixe, a Lebre, o Leão, o Cavalo e, finalmente, o Urso. Assim que o portador da máscara chega perto, sua própria personalidade desaparece e ele se torna o próprio Deus – o fôlego sagrado da vida entra nele – deixando-o em transe. Segurando o bebê diante de cada divindade mascarada, o feiticeiro implora para que cada Guardião proteja a criança do caos da Discórdia e a guie pelo caminho dos Brancos. Erguendo sua mão num antigo gesto abençoador, o Guardião invocado dá sua bênção e pronuncia uma oração de proteção, traçando com o dedo indicador da sua mão direita, um antigo símbolo dos Brancos, na testa do bebê.
Com uma oração final, o feiticeiro ou dash-dinh agradece os Guardiões e seus espíritos retornam aos portais nas fronteiras do mundo. Os atares mascarados tornam-se, novamente, meros atores. Então, o feiticeiro fecha o círculo e a família retorna à casa do bebê, onde amigos e vizinhos os recebem com uma festa. Mais tarde, naquela noite, depois de todos terem ido embora, um dos pais terá um sonho em que um dos Guardiões vem saudá-lo. Às vezes, esse Guardião dá à criança um segundo nome, o qual deve ser mantido em segredo, já que contém um enorme poder. Esse Guardião será o protetor especial da criança pelo resto da sua vida, e a família, todos os anos, agradecerá a esse Guardião, no aniversário da criança.
CONCLUSÃO
Como se pode concluir das evidências tanto dos moradores quanto dos historiadores do Mundo-Médio, apesar da longa história envolvendo o ritual de Invocação dos Guardiões é talvez, a cerimônia mais importante da vida de uma criança. Para os pais e anciãos da vila, é um ritual necessário que, sozinho, pode garantir a saúde e o bem-estar de uma criança. Essa cerimônia não apenas apresenta a “apresenta” a criança aos deuses, como também afirma que o recém-nascido é o mais recente – e o mais vulnerável – membro da família e da comunidade. Num nível mais prático, o ritual garante doze “Guardiões” humanos, para vigiar a criança, indivíduos que vão se sentir responsáveis por aquela criança até que ela chegue à vida adulta.
Apesar da longa história envolvendo o ritual de Invocação dos Guardiões e a inquestionável fé do povo do Mundo-Médio, nenhuma pesquisa provou sua eficácia real. No entanto, um estudo que analisa os efeitos a longo prazo que o ritual tem sobre a saúde física e o bem-estar psicológico de adolescentes, chegou a algumas descobertas interessantes. De acordo com essa pesquisa, crianças que passaram pelo ritual têm o dobro de chance de chegar à vida adulta, do que as crianças que não foram “iniciadas”. Mas essas conclusões ainda não foram anunciadas ao público pelos pesquisadores responsáveis.
Escrito por:
ROBIN FURTH
Ilustrado por:
RICHARD ISANOVE
Traduzido por:
ROBERTO GEOLOL
Professor de Língua Portuguesa e Literatura, graduado em Letras pela UEG (Universidade Estadual de Goiás), pós-graduado em arte/educação pela UFG, viciado em literatura de terror/suspense, amante incondicional de séries e Hq´s e fã de carteirinha do mestre Stephen King desde 1996.
3 Responses
Ótima matéria.
Eu não me lembrava desse texto, acho que traduzi alguns, mas esse não tava na lista! Ou tava?
rs
Edi e as HQs traduzidas? da pra achar elas em algums “site menos sério” que o seu? XD