No mundo médio, assim como no nosso mundo, muitas pessoas passam suas vidas se devotando a um proposito maior. Para os “agentes do branco”, ambições pessoais são menos importantes quando se trata do bem maior da humanidade. Um grande número desses indivíduos – como parteiras, herbalistas e médicos – expressam esse desejo de servir como uma necessidade de cuidar do corpo… Para outros, como os Pistoleiros, esse desejo se manifesta através de um impulso de combater toda a injustiça do mal. E talvez isso também seja uma forma de cura, mas que não diz respeito ao quadro mortal, mas sim ao âmbito politico.
Mas há outros que também devotam um longo tempo a servir, embora eles não sejam nem os médicos da erradicação de doenças, com medicamentos e bisturis, nem guerreiros que combatem o mal na escuridão exterior com espadas ou pistolas. No entanto, eles também são curadores, de certa forma. O que acontece é que apenas os feixes que eles seguem – que, como todas as outras formas do branco, levam para a torre em si – são de contemplação e silêncio.
O Mundo-Médio é uma terra de muitos deuses e deusas de muitas ordens religiosas que buscam servir ao espirito. Mas de todas as seitas que prometem oferecer alimento aos famintos, roupas aos descamisados, absolvição para os arrependidos, nenhuma é tão famosa – ou venerada – como “as irmanzinhas da rosa”. Pois, como diz o velho ditado, se a alma é um mar de rosas vermelhas e bonitas, então as irmanzinhas são as jardineiras.
No alto discurso – uma antiga linguagem ritual do Mundo-Todo – há uma palava que descreve tanto a força que liga um individuo ao seu ka-tet quanto a teia de energia que torna uma sociedade coesa. Essa palavra é Khef. Khef é um conceito que repercute profundamente nas mentes dos Mundo-Medioanistas. Implica em nascimento, força de vida, e tudo o mais que é essencial à existência do continuum. Também está relacionada aos servidores, como uma forma de inconsciente coletivo, uma vez que aqueles que compartilham do mesmo khef são unidos psiquicamente e podem compartilhar de sonhos e experiências, mesmo que separados por grandes distância. Mas talvez a definição mais ampla e descritiva de Khef seja também a mais simples: Água.
Sem água, o corpo humano desidrata e morre. Sem água, as terras tornam-se fendas e deserto. Sem as marés constantemente fluindo das emoções – que também são simbolizadas por este elemento liquido – a sociedade se desintegra. Khef é a própria vida e a vida é Khef. É a água que flui da terra, mas é também a umidade do corpo – a saliva, seu sangue, suas lagrimas. Cada criança do Mundo-Médio sabe que as espirais da Torre Negra sobem ao infinito, acima do céu, mas apenas os metafísicos percebem que – como uma grande rosa – as sua raízes se ramificam para baixo, ao alcance dos mais profundos reservatórios de Khef, as águas da eternidade.
Cada uma das irmãs que veste uma túnica branca compromete-se com instituições de caridade, castidade e ao Khef. Mas desses três votos, o último deles é o mais sagrado. Para as irmanzinhas, devotar-se ao khef é algo que elas levam muito a sério, afirmando que elas são as irmãs de toda a raça humana. Se um único homem se vai sem comida, então elas sentem a fome também. Se uma mulher morre de sede, então elas compartilham de sua morte horrível. E se um homem mata outro com raiva, elas sentem tanto a dor da morte e o ferimento, quanto a culpa e a dor de quem empunha a arma ofensiva.
Entre os cortesões do Mundo de Gilead, as irmãzinhas da rosa são mais famosas pelo retiro que elas criaram para as mulheres que caíram em desgraça, para onde as senhoras há muito nascidas se retiram para pagar penitência por terem traído seus maridos em suas cidades. Mas para as próprias irmãs – radiantes, mas humildes, em seus hábitos brancos, com os seios cobertos pelo pano bordado de uma única rosa vermelho-escuro – a manutenção deste retiro é o menos importante dos seus trabalhos. E depois de um ano cozinhando, consertando e limpando para os pobres, doentes e feridos, aquelas filhas penitentes de Gilead tinham que concordar com isso.
Alguém corajoso o suficiente para visitar os destroços fumegantes deixados por John Farson e suas hordas depois de terem arrasado e saqueado a cidade, inevitavelmente veria tendas brancas das irmãs erguidas nas proximidades, a tampa frontal de cada rede de lona com o simbolo de sua ordem. Dentro destes encontram-se doentes escaldados, laceados ou crivados e feridos, todos eles são carinhosamente tratados pelas irmãs. Logo atrás das tendas estão as moradas improvisadas e fogueiras das famílias desabrigadas. E por trás dessas, as fogueiras onde as irmãs preparam refeições para as pessoas seriamente feridas ou doentes o suficiente para servirem a si mesmas. Na borda de seu acampamento encontram-se as valas comuns onde as irmãs tem lançados os abatidos para seus descansos finais, e os pequenos, numa tenda de oração sem adornos, onde os enlutados podem honrar seus deuses e seus mortos.
Seguir na esteira de destruição de Farson – suas golas brancas caminhando em meio a fumaça e os ventos da destruição – foi uma escolha perigosa que as irmãs fizeram em vida. Muitos já foram mortos pelo fogo inimigo, ou foram capturados, estuprados, esfolados ou queimados, para a diversão das tropas de Farson. No entanto, quando os dignitários foram até a casa da irmã mãe, em Debaria, perguntando por que elas continuam a servir dessa maneira, apesar dos perigos que tais atitudes podem trazer a elas, as irmãs responderam que não temem os homens mortais. Os inimigos do branco podem destruir seus corpos, mas e escuridão exterior nunca vai tocar suas almas.
No entanto, como as irmãs sabem muito bem, o branco também tem inimigos poderosos, e as vezes os inimigos podem aparecer no mais improvável dos lugares. Como diz o velho ditado, “quem anda em companhia da luz do branco, inevitavelmente chamará a atenção das sombras”. E no passado as irmãs tiveram uma pequena demonstração de uma parte significativa dessas criaturas das trevas.
No coração da casa mãe das irmãs, em Debaria – uma propriedade murada de pastos verdes, campos férteis, celeiros, confeitarias e dormitórios – encontra-se um jardim de rosas sagradas, inigualável em qualquer lugar do Mundo-Médio. No centro do jardim há um templo na forma da própria Torre Negra, mas a sua janela de sacada central não é um painel de treze cores, como é a janela da torre que fica no coração do Fim-Do-Mundo, mas um magnifico pedaço de vitral na forma de uma rosa.
Pois apesar da beleza do tempo, são as rosas espetaculares das irmãs que atraem os peregrinos de todos os cantos do Mundo-Médio: rosas que são de uma tonalidade vermelho escura com uma luz feroz em seus interiores, centros amarelos como o sol. E dizem que se você se sentar por tempo suficiente no jardim, com os olhos fechados e sua respiração regular e constante, você pode ouvi-las cantar.
Segundo a lenda, todas as rosas do jardim das irmãs nasceram de uma única flor, trazida para a casa da mãe pela fundadora da ordem, há cerca de 300 anos antes. Depois de instruir seus seguidores a cultivar os campos, alimentar os famintos, a grande irmã, doente, partiu com sua bengala em direção ao por do sol. O seu proposito? Falar com Gan, o espirito que criou a torre negra, localizada nas profundezas do Fim-Do-Mundo. Ela se foi por dez anos.
Quando ela voltou – de cabelos brancos, magra como um espantalho e inclinando-se pesadamente sobre a bengala – ela segurava na mão a mais magnifica rosa que alguém já tinha visto. Embora sua raiz principal e única tenha sido embalada na palma da mão durante muitos anos, a irmã mais velha disse que a rosa não tinha morrido durante as suas viagens, porque ela a tinha regado com suas lágrimas.
Quando as mulheres de sua ordem questionaram-na mais atentamente sobre como ela tinha feito para chorar tão abundante fluxo de lagrimas, ela apenas balançou a cabeça, dizendo que seus métodos não importavam, já que no final das contas ela havia trazido uma legitima rosa do jardim da torre negra.
No jardim das irmanzinhas, a rosa mágica plantou suas raízes profundas no reservatório do Khef, onde elas foram bem cuidadas. Alimentada por essa rica fonte de água, ela floresceu e multiplicou-se, até que o jardim das irmãs se encheu de inume-as rosas vermelho escuras que pareciam murmurar uma belíssima canção. Mas, infelizmente, aquela bela rosa não foi a única entidade que a irmã mais velha trouxe do Fim-Do-Mundo, embora ela tenha percebido isso quando já fora tarde demais. Rastejando ao longo de sua sombra, evitando enquanto o fazia, o cheiro e a canção da rosa, da maneira como podia, veio uma criatura invisível e mortal. Como uma infecção ela entrou na casa-mãe sorrateiramente, por trás da irmã mais velha e em seguida agachou-se por sobre a sombra do jardim de rosas que fora criado, e que ela abominava, e esperou sua vez.
A primeira irmã que morreu empalideceu e veio a falecer cerca de um ano após o retorno da irmã mais velha. Como ela tinha sido uma alma generosa, excepcionalmente dedicada em sua devoção ao khef, ela foi sepultada em um tumulo próximo ao jardim de rosas e uma rosa espetacular foi plantava sobre sua cova. Logo após uma segunda irmã pereceu, e depois uma terceira, até que havia cinco sepulturas perto daquele jardim de rosas alimentado pelas águas do khef. Mas foi então, que numa noite enluarada, um mês inteiro após a sexta irmã ter morrido e uma rosa ter sido plantada sobre sua sepultura, que as irmãs ouviram uma batida na varanda. As rosas vermelho escuras havia se tornado mortalhas brilhantes e as irmãs haviam voltado dos seus túmulos.
Irmã mais velha – que tinha se enlutado pela morte de tantas das suas seguidoras – chamou o retorno delas de milagre. Deu graças a Gan pela mágica que havia trazido a vida delas de volta do Fim-Do-Mundo, dizendo que agora nenhuma de suas filhas adotivas jamais morreria. As irmãs ressuscitadas acenaram as cabeças em unissomo, e falando como um, disseram que o khef das rosas tinha restaurado suas almas. Mas apesar da irmã mais velha ter ficado muito feliz, alguns dos membros mais jovens da ordem examinaram mais atentamente o negrume que agora cobria a sepultura intacta daquelas que um dia amaram e duvidaram de tal milagre. Mas elas nada disseram.
Foi nessa época que o templo em forma de torre negra foi projetado e construído por pedreiros cujas vidas foram salvas pelo poder milagroso de cura das irmãs ressuscitadas. Como quando um edifício desabou em uma cidade próxima, esmagando os corpos do pedreiro, as irmãs haviam restaurado a sua saúde. embora ninguém as conhecesse. As irmãs ressuscitadas haviam erguido sua barraca, seu próprio hospital de seda branca, um pouco além da parede externa dos domínios das senhoras, e não permitiram que nenhum outro membro da sua ordem ali entrasse. Elas disseram que haviam trazido algo de mágico de volta com elas, da terra dos mortos, mas nenhuma pessoa viva poderia vê-lo, para que não soubessem o que nenhum ser mortal deveria saber. E assim dizendo, elas baixaram as portas de pano de suas tendas. Apesar de suas irmãs poderem, vez ou outra, ouvir sons através da seda fina, eram sons abafados, que por vezes lembravam o zumbido de insetos e as vezes o tilintar de sinos – elas nunca souberam o que acontecia la dentro.
O que primeiro levantou as suspeitas da irmã mais velha foi o fato de que enquanto a maioria dos homens feridos e das mulheres que entravam naquela tenda de seda branca saiam completamente curados, um bom número desaparecia. No entanto, quando a irmã mais velha pedia para ver os cadáveres, seus pedidos eram sumariamente negados. E quando ela perguntou novamente, dizendo que seus corpos deveriam ser devolvidos as famílias enlutadas, as irmãs ressuscitadas sorriram umas para as outras, e em seguida falaram em unissomo – quase como se fossem uma única criatura, mas em três corpos – que todos os corpos dos homens perdidos tinham contraído uma infecção terrível e que seus corpos foram enterrados imediatamente para a segurança dos demais. Em seguida, todas as três sorriram simpaticamente e voltaram para a barraca, que fora desviada para fora do caminho da brisa que soprava sobre por sobre o alto muro exterior.
Irmã mais velha desconfiou, mas não disse nada. Quando ela se afastou, inclinando-se ainda mais por sobre seu cajado, voltou a pensar em suas viagens através do Fim-Do-Mundo e das muitas infecções terríveis que ela havia encontrado lá. Ela passara a suspeitar de alguma dessas doenças havia, de alguma forma, entrado em seu convento, e que ela teria que erradicá-la.
Numa noite enluarada, quando as outras irmãs estavam dormindo, irmã mais velha rastejou para a tenda de seda que as irmãs ressuscitadas haviam erguido pouco além da parede externa da ordem. Silenciosa como a escuridão, a grande irmã prendeu a respiração, enquanto erguia o retalho da porta de seda e olhava para dentro.
Mal ela viu o que estava dentro, então ela puxou de volta a mão que segurava o retalho e a seda escorregou por entre seus dedos trêmulos. Sua mão corroida pela artrite voou até os labios ressecados, abafando um grito. Deitada na cama de seda branca havia pelo menos meia duzia de homens inconscientes, com seus corpos cobertos por insetos rastejantes do tamanho de abelhas. Mas não fora isso que a havia chocado. Ah, não! O que a levou de volta, mancando, até o dormitório principal, tão rápido quanto suas pernas velhas permitiam, foi o rosto de sua sétima irmã – aquela que nunca havia pertencido a sua ordem. E enquanto os rostos das seis irmãs horrorizadas presenciavam, ela se debruçava sobre o corpo sangrando de um homem inconsciente, lambendo e mordendo, como se fosse um suculento pedaço de carne – foi a cara da sétima que a fez rezar para que Gan protegesse sua alma.
Embora ela usasse uma touca e um hábito branco, não era humana. Sua pele era cinzenta e fluida, e enquanto as irmãs-vampiro se alimentavam do corpo do homem sangrando, ela regojizava-se, estremecendo de malvada alegria. Era quase como se o khef do moribundo estivesse sendo transferido para ela através dos beijos mortais das irmãs-vampiro. E foi só depois que a irmã grande percebeu que o vermelho da rosa sobre o peito não era de todo escuro, o vermelho-escuro era de sangue.
Depois de descobrir as criaturas que haviam profanado seu convento, as irmãzinhas arrastaram os homens inconscientes de suas camas e queimaram a tenda de seda branca. Mas mesmo depois de o fazerem, algo se abateu para fora das chamas. Era enorme e preto e guinchou como um banshee, ou como uma ave de rapina malvada que tinha sido obrigada a abandonar seu ninho sujo.
Na manhã seguinte, as irmãs desenterraram os seis caixões e encheram seus corpos apodrecidos com sal. Depois de queimar os caixões, elas pediram aos pedreiros que as haviam ajudado antes, para esculpirem as efigies dos doze guardiões da torre que agora adornam a parede interna do convento de nossa senhora. Porque, como diz o velho ditado: “quem anda em plena luz do branco, inevitavelmente chamará a atenção das sombras”. E naquelas sombras são muitas as criaturas de pesadelos que se alimentam do khef, dos homens e das rosas.
Escrito por:
Robin Furth
Ilustrado por:
Richard Isanove
Tradução e adaptação:
Projeto 19
Professor de Língua Portuguesa e Literatura, graduado em Letras pela UEG (Universidade Estadual de Goiás), pós-graduado em arte/educação pela UFG, viciado em literatura de terror/suspense, amante incondicional de séries e Hq´s e fã de carteirinha do mestre Stephen King desde 1996.
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