Fan art: “O Fantasma de Jack Roswell” (Fic)

Quinta é dia de Fan-Art aqui no stephenking.com.br, e como o Cris ainda não se manifestou, tomei a liberdade de postar mais uma Fic minha que se passa no universo da Torre Negra. Trata-se da história de um garoto que trabalha num cabaré de beira de estrada numa cidadezinha pouco evoluida do Mundo-Médio e que certo dia recebe uma visita tão assustadora quanto inesperada. Não  usei personagens principais ou secundários dessa vez (com exceção do Homem de Preto), preferi dar asas a imaginação e criar os meus próprios personagens. Espero que gostem.

“Ele morreu de forma horrível!” Diriam alguns. “Nem fez muita falta!” Diriam outros. Mas o que ninguém em sã consciência provavelmente diria, era que Eduard B. Lincon não era uma boa pessoa.

Morreu cedo o pobre Eduard. Teve seus tímpanos rasgados, transpassados de uma orelha a outra por uma estaca de madeira, de ponta minuciosamente afiada. Suas tripas foram expostas em longas tiras, formando um pentagrama improvisado no chão de uma floresta escura, de árvores velhas, com galhos tortos e ramos apodrecidos. Seus olhos foram arrancados das orbitas e costurados nas palmas das mãos. No momento de sua morte, antes mesmo de exalar seus últimos suspiros, jaziam inertes, fitando a noite estrelada e silenciosa do interior da floresta. Isso aconteceu há muito tempo, numa época onde o mundo começava a seguir adiante. Porém, ainda hoje correm os boatos de que aquele pedaço velho de terra tornou-se maldito após a sua morte. Dizem que a noite, quando o vento frio sopra as poucas folhas que ainda se apegam bravamente aos galhos das árvores, ele pode ser ouvido. Gemendo, sussurrando palavras desconexas em uma língua profana. E dizem que tudo que ele toca apodrece e que o seu rastro pode ser percebido, mesmo de longe, pois por onde seu espirito passa o mato jamais volta a crescer. Ele não vê nada, pois seus olhos ainda permanecem grudados as mãos, com o sangue banhando-lhe as orbitas oculares, agora vazias. Mas sente o cheiro de tudo que é vivo. E tudo o que é vivo, quando o encontra, morre.

O ano era 1845. Um ano maligno, segundo muitos contam. Foi quando ocorreu a primeira, das muitas mortes “acidentais” que se seguiriam nos próximos séculos e que aumentariam consideravelmente o número de habitantes do velho cemitério, nos fundos da igreja, que se encontrava sempre em constante reforma. O Saloon não tinha nome, mas muitos gostavam de chama-lo de “Potro arriado”, levando-se em conta as características peculiares do lugar.

O “Potro” era o tipico estabelecimento comercial que hoje em dia é tão bem retratado nos filmes de velho oeste. Tinha portas duplas, feitas de dois velhos pedaços quadrados de madeira, corroídos nos cantos pelas traças, que rangiam de maneira anormal sempre que um novo visitante resolvia atravessá-las. O chão era de terra batida, “tão seco quanto poeira do deserto de Mojav” e era constantemente frequentado por pessoas de má índole, carniceiros, ladrões, e, diriam alguns, até mesmo Can-Tois e Taheens disfarçados de gente.

O barulho de um piano velho podia ser ouvido vindo do segundo andar, agredindo os ouvidos dos poucos frequentadores daquela noite. Cinco ou seis homens sujos e mal encarados, com as barbas por fazer e os dentes amarelados por causa da Erva-do-Diabo, estavam sentados ao redor das poucas mesas redondas que conseguiram sobreviver quase intactas, por incrível que pareça, a fúria de alguns dos frequentadores que vez ou outra passavam da conta na bebida. Dois deles bebiam a cerveja barata que o pouco dinheiro os dispunha a comprar e mastigavam com prazer quase orgástico os pedaços de carne seca que Bob-Cara-Torta disponibilizara, mediante o pagamento de dois míseros dobrões de cobre, enquanto os outros se concentravam em um difícil jogo de carteado, acompanhados por duas “distintas” damas, ambas de seios fartos e quadris largos. O balcão, assim como todos os outros poucos moveis do lugar, também era de madeira e pendia torto para a direita, motivado pelo peso de um barril de Graft barato, cheio até a metade. Mas o que atraia a atenção, naquela noite em especial, não era o aspecto peculiar do lugar e nem mesmo seus frequentadores estranhos e cheirando a bebida barata. O que atraia a atenção era Jack.

Jack Antony Roswell era alto. Aproximadamente dois metros. (ou como diria sua tia Cord: “Dois de altura por quatro de largura”). Não que o velho Jack fosse gordo. Não! Não mesmo! Na verdade, Jack Roswell era muito magro. Suas roupas largas de vaqueiro é que o deixavam com aquela estranha aparência. Seu chapéu de palha, pendendo nas constas, grudado ao pescoço por um pedaço surrado de barbante, dava-lhe um ar de “Yeah forasteiro! Longos dias e belas noites para você e para sua colheita!”

Jack morava em Briscow. Um pequeno vilarejo ao sul de Lud, conhecido como “A vasta terra do gado e da Erva-do-Diabo.” E era exatamente por causa do ultimo item que Jack batia descontroladamente a cabeça contra a parede de madeira do “Potro Arriado”. De inicio ninguém notou. “Cara Torta” estava acostumado a receber esse tipo de gente em seu estabelecimento. Pessoas que bebiam um pouco além da conta e davam vexame era algo que ocorria com mais frequência no Potro Arriado do que em qualquer outro chamariz de canto de esquina da costa Oeste do Mundo-Médio. Mas quando o ruido passou a incomodar os outros frequentadores, não havia como deixar passar em branco.

Cara-Torta ajoelhou-se ao lado de Jack (mais para certificar-se de que o estrago na parede do estabelecimento não lhe traria mais prejuízo do que o normal) e examinou o ferimento na cabeça do homem. Não se importava muito com seu estado de saúde, tendo em vista que aquela não era a primeira vez que o vira possuído pela “Erva”. Já presenciara a mesma cena em lugares diferentes pelo menos três vezes antes, desde que Jack começara a fazer uso da planta maldita, depois que sua mulher, Rose, morreu graças a uma estranha (ao menos para ele) doença que alguns costumavam chamar de Câncer.

Jack já começava a dar sinais de cansaço. O ritmo em que se debatia diminuíra. Uma baba esverdeada escorria de sua boca, caindo por sobre o ombro em grossas gotas, manchando-lhe a camisa cor de salmão com os respingos. Seus olhos estavam arregalados em uma expressão completamente atônita. Passeavam nas órbitas, de um canto a outro, como se procurassem desesperadamente por algo ou alguém que não estava ali. Suas mãos, largadas em braços excessivamente magros e desleixados no chão, agora tremiam mais devagar.

É só outra crise. Vai passar logo! – comentou um homem no fundo do estabelecimento. Tinha um chapéu velho, caindo torto por sobre o rosto, fazendo companhia a um cigarro de palha queimando devagar em sua boca. Na mão segurava uma fileira de três cartas de baralho, divididas igualmente em forma de leque. Seus pés, de chinelas surradas e unhas sujas, estavam largados em cima de outra cadeira. Acompanhava pelo canto do olho direito os movimentos lentos do adversário de jogo, sentado do outro lado da mesa.

Se você não calar essa porra da boca imunda, prometo que Jack não será o único a ter uma crise por aqui – disse Bob, sem desviar a atenção do homem a sua frente. Sequer alterou o tom de voz, mas ao que parecia, o homem havia entendido o recado.

Pouco tempo depois Jack parou de se debater e aos poucos a baba parou de escorrer. Suas mãos não tremiam mais e os olhos pareciam mais tranqüilos, apenas fixados em um ponto qualquer no tempo e espaço no qual seus pensamentos provavelmente se encontravam perdidos. Logo a coisa voltaria a normalidade e Bob poderia voltar aos afazeres. Ainda tinha muito vomito a ser limpo. No ponto onde Jack batera a cabeça, uma enorme mancha vermelha tinha se formado, e ao seu lado o chão de terra batida, sujo pela gosma esverdeada que sairá de sua boca, se parecia com um chiqueiro de porcos mal cuidado.

– Viu? Eu não disse?

Dessa vez Bob optou por ignorar o comentário. A crise de Jack tinha chegado ao fim. A mancha na parede era só sangue e a possa esverdeada no chão era só Erva-do-Diabo rejeitada pelo corpo do homem. Não havia mais motivos para aborrecimento, graças ao bom e velho homem Jesus.

– EDDIE, SEU IMPRESTAVEL! – Gritou Bob – VENHA AQUI!

Um homem franzino, de aproximadamente vinte anos, saiu do quarto nos fundos e apareceu como em um passe de mágica do outro lado do balcão. Usava uma calça jeans desbotada (de um numero ligeiramente maior, a julgar pela maneira como o tecido ondulava em seu corpo) e uma camisa branca-encardida. O par de botas de couro estava tão gasto que a ponta de um dos pés aparecia em um enorme buraco, com seus dedos sujos e de unhas mal cuidadas saltando para fora dele. Seu rosto magro era repleto de sardas embaixo dos olhos, no meio e ao redor das bochechas. Tinha o cabelo crespo, enrolado em pequenos e mal cuidados tufos, vermelhos como um sol se pondo no horizonte.

– O que houve, Senhor? – Perguntou ele, visivelmente preocupado.

– Venha cá um instante.

Eddie atravessou o balcão e se postou ao lado de Bob e Jack em dois movimentos tão rápidos de corpo que Bob mal conseguiu perceber quando ele o fez.

– Tudo bem Jack… – Disse Bob – Foi só uma crise. Agora se levante e vamos embora. Eddie vai ajudá-lo a chegar em casa.

Quando Bob tocou o braço de Jack com seus dedos exageradamente gordos, sentiu que algo estava muito estranho. O toque trouxe a tona uma sensação ligeiramente familiar; Foi como tocar um enorme cubo de gelo.

– Jack? Você está…

O corpo de Jack, que já se encontrava ligeiramente inclinado, tombou por completo. Sua cabeça raspou na parede com o movimento do corpo, deixando uma trilha vermelha de sangue, semelhante a uma rubrica. Seus braços mergulharam na poça regugitada de Erva-do-Diabo ao lado do corpo e seus olhos, abertos em um esgar de dor horripilante, não se moviam mais.

– Acho que Jack morreu. – Disse o homem, nos fundos do Saloon, descartando a ultima carta que tinha nas mãos. – Ganhei!

***

O velório de Jack foi o que a tribo dos Mannis, prostrada nas terras ao norte de Briscow, chamaria de “ocasião solitária”. O sol do meio dia esbanjava vitalidade, lançando chamas dançantes de calor no horizonte de uma terra seca e árida. Foi difícil para Eddie cavar o solo duro e pedregoso do quintal dos fundos do “Potro Arriado”, de modo que o serviço começado precisamente as sete horas, de uma manhã escaldante do que talvez fosse uma terça feira (nem o tempo parecia se comportar muito bem por aquelas bandas) só terminara precisamente ao meio dia. E mesmo assim, o esforço aplicado naquilo fora muito maior do que o próprio Eddie calculara. Quanto a Bob, só se arriscara a aparecer minutos antes que o homem concluísse o serviço. Temia que sua presença ali pudesse intimida-lo de alguma forma. Não era nada fácil cavar um buraco de pelo menos cinco palmos de profundidade, em uma terra dura como aquela. Mal se lembrava da ultima vez que vira alguém se arriscar a produzir tal façanha. Geralmente os bêbados e mortos eram deixados para trás, apodrecendo sobre o sol escaldante. O que sobrava deles os urubus digeriam durante o dia, sem fazer muita cerimônia.

– Por Deus… Como ele fede! – Comentou Bob, levando a mão enrugada até a boca.

– É a erva… – Disse Eddie, apanhando com cuidado o corpo do homem que em um passado não muito remoto já lhe ajudara a superar um problema muito grave, relacionado a sua timidez com as garotas. Infelizmente o homem agora não passava de um monte de carne, jogado com dificuldade em suas costas, e mesmo seus conselhos amorosos dignos de um verdadeiro Dinh, agora pareciam tão distantes e mortos quanto à carapaça de carne que outrora cobrira seu espírito. – Tonny disse que foi uma coisa chamada “Overlose”. Não me alembru muito bem. Não me alembru muito bem de muita coisa. Mas Tonny disse que as pessoas que fumam e mascam a erva durante muito tempo, acabam assim. Elas apodrecem por dentro primeiro, pra só dispois cumeça a apodrecer por fora. Pur isso o cheiro ruim.

– Pelo amor do homem Jesus, Eddie… Vamos logo com isso. Não sei se agüento muito tempo.

Eddie obedeceu, e jogou o corpo de Jack de qualquer forma dentro do buraco. O ruído de suas costas batendo no solo pedregoso do terreno ecoou, fazendo companhia ao ruído das asas dos urubus, batendo, poucos metros acima de suas cabeças.

Eddie não possuía a habilidade e nem a destreza de um profissional, quando se tratava de enterrar defuntos, mas as vezes se empenhava tanto no trabalho que quase poderia se passar por um. Suas mãos calejadas terminaram o serviço apenas alguns minutos depois de terem cavado o buraco. O corpo de Jack agora não passava de um montante de terra batida, absorvendo a forte luz solar do meio dia, e talvez, nos recantos mais profundos dos mistérios que rondam a morte, esperando por alguma alma misericordiosa que pudesse encomendar a sua.

– Pai nossu… Sinhô homi Jesus que está no céu… – Começou Eddie, mas logo foi interrompido por Bob, que pigarreou, cuspindo um montante considerável de saliva no chão e grasnou algo em tom displicente.

– Hora vamos… Jack era um bom homem, mas desperdiçar orações antigas na língua superior não vai trazê-lo de volta.

– Mas Se…

– Sem mais. Pegue as ferramentas e vamos embora. Parece que vem uma tempestade de areia por ai, e eu não quero dar a você mais um corpo para enterrar. Feche as portas antes de entrar.

Eddie fitou o vazio desértico a sua frente, comprimindo os olhos com cuidado, observando as ondas dançantes de areia que começavam a aparecer no horizonte. Pensou em como era triste a historia de vida de Jack e o quanto aquele fora um final injusto para um homem tão bom e temente a Deus.

– Vamos logo Eddie!

Eddie abaixou a cabeça e fitou mais uma vez o montante de terra que era o corpo de Jack. Dessa vez não imaginou nada. Apenas deixou-se levar pelos sentimentos, e sentiu uma sutil, mas agradável lagrima rolar-lhe pela face. Ao menos ele ainda não tinha sido tocado pela maldição da Erva e Eddie agradecia todos os dias ao Homem-Jesus por isso. Talvez não tivesse agradecido tanto, se soubesse que aquela não seria a ultima vez quer veria o pobre Jack Roswell.

***

As noites em Briscow assemelhavam-se em muitos aspectos as noites das terras desérticas ao leste da cidade. Enquanto durante o dia, chegava-se ao pico de cinqüenta graus, a noite a temperatura caia exageradamente, para pelo menos dez graus negativos. É obvio que a mudança brusca de temperatura muitas vezes trazia infortúnios para os moradores daquela região, privando-os muitas vezes de uma noite tranqüila de sono. Naquela noite, porém, não era somente um, mas dois os fatores que privavam o inocente Eddie de uma noite tranqüila de sono. A chuva e os lobos. Procuravam por abrigo, por um esconderijo que pudesse mantê-los seguros do frio e de outros predadores naturais, Ienas e Vagos-Mutantes com os quais a mente limitada de Eddie jamais chegara sequer a sonhar. Seus uivos eram de gelar a espinha.

Eddie permanecia enrolado em seu rústico cobertor de retalhos, com os braços e pernas encolhidos embaixo dele, como um bebê no interior do útero materno, esperando pelo sono que demorava a chegar.

Os lobos… – Sussurrou, para si mesmo – Tonny disse que os lobos são maus… E que eles vêem do leste. Da terra do Senhorio, onde o dia é sempre noite. Tonny disse que alguns levam as criancinhas e nunca mais devolvem. Tonny sabe de muitas coisas…

Eddie permanecia com a cabeça mergulhada em baixo do cobertor, fitando o exterior com o olho direito semi-serrado, em uma autentica posição de vigília, provavelmente ensinada a ele por seu amigo imaginário. Tinha muito o que agradecer a Tonny, pois foi graças a essa “autentica posição de vigília” que ele pode perceber o homem que se aproximava vagarosamente da cama. Seus contornos eram magros… Não… Eram mais do que isso… Eram “cadavericamente” magros. Seu cabelo negro caia em pequenos cachos sujos de lama, por sobre seus ombros largos e despojados. Seu rosto era uma massa de músculos destruída pelo tempo, oculta sobre os contornos desconfortáveis de uma grossa camada de lama. Para Eddie foi difícil precisar a altura do homem, já que sua mente se mantinha ocupada, traçando mil e um planos de fuga que sequer chegaram a ser colocados em pratica. E também existia o fato de que o homem era corcunda. Suas costas se curvavam para a frente em uma grotesca inclinação inumana, a medida em que o homem arrastava os pés sujos de lama por sobre o chão do quarto de Eddie.

Tonny? Tonny? É ocê?

Lá fora a chuva caia pesada, castigando o solo poeirento de Briscow. Um relâmpago caiu, não muito longe dali. Os contornos machucados do rosto do homem se iluminaram, revelando sua identidade macabra.

– Jack? Mas… Mas ocê tá morto… Eu… Tonny me disse… Não! Não! Num podi sê, num é Tonny? Nóis enterrô Jack. – Durante um longo momento fez-se um silencio aterrador. Eddie, sem fôlego, não conseguiu mais emitir qualquer palavra, ou mesmo um ruído seco de surpresa. Seus olhos estavam fixos no homem parado em pé a sua frente, com o corpo grotescamente curvado e os braços largos, quase tocando o solo, fitando-o por debaixo da camada de lama que cobria seus olhos revirados nas órbitas. Olhos mortos.

– Um homem vestido de preto virá! – Disse Jack. Seus lábios moveram-se devagar, derrubando com um baque surdo no chão a camada de lama que se encontrava em seu interior – Um homem conhecido por vários nomes e varias faces. Um feiticeiro. Ele pedirá comida e água, mesmo não precisando de nenhum dos dois. Ele pedirá abrigo, ainda que também não precise deste. E ele trará discórdia, dor e sofrimento. Ele trará a peste, a fome e a miséria. Os outros o aceitarão, mas você terá que negá-lo Eddie… Ouça com cuidado… Você o negará, ainda que isso pareça impossível.

– Mas Jack…

– Você o negará, Eddie…

Os lábios do homem morto cintilaram na escuridão do quarto de Eddie, abrindo devagar, exibindo ligeiramente a fileira de dentes podres e amarelados. Por de trás de uma grotesca fresta de um maxilar que já não se encontrava mais ali, Eddie pode ver duas finas antenas de barata projetando-se para fora de sua boca, balançando ritmicamente de um lado para o outro em rápidos movimentos circulares, como se o pequeno inseto procurasse se acomodar-se na língua macia do defunto. Ao percebe-lo, em um rápido movimento de lábios e garganta, o homem morto engoliu o inseto, que transpassou o pomo de adão sem nenhuma dificuldade.

– Você o negará, Eddie… – Repetiu a voz do morto, – E só isso, e apenas isso, salvará a sua vida…

Como em um passe de mágica, a corcunda do homem pareceu sumir e ele ergueu-se em direção a Eddie, como uma tarântula erguendo as patas traseiras, prestes a dar o bote. Quando outro relâmpago caiu, iluminando as costas do defunto, lançando um clarão de luz ofuscante sobre os olhos do homem assustado, o homem morto que ele próprio enterrará e que o visitará naquela noite, alertando sobre a presença de um homem que viria vestido de preto e que traria a peste e a miséria, desapareceu tão misteriosamente quanto aparecerá.

No dia seguinte Eddie talvez duvidasse do que ele próprio tivera o desprazer de presenciar com aqueles olhos que a terra a de comer, mas naquele momento o fato era recente demais para ser esquecido, ou mesmo ignorado.

– Meu bom homem Jesus! – Proferiu Eddie, exibindo os dedos em riste, formando o sinal da cruz – Ta tudo bem Tonny… Ele já foi. Pode ficá tranqüilo agora. Nois tamô bem. Nois vamô fica bem. Jack num vai faze mal ninhum…

O quarto de Eddie mergulhara em um silencio quase completo, cortado apenas momentaneamente pelos sussurros do vento que transpassava as frestas das janelas. O homem morto se fora , assim como o uivo dos lobos.

“Acho que preciso de um copo de água Tonny.” – Pensou Eddie, dirigindo-se a um amigo imaginário do qual quase nunca obterá resposta.

Eddie ergueu-se da cama, cobrindo os contornos nus de seu corpo magro com a velha manta de retalhos multicolorida. Atravessou o pequeno corredor que dava para a cozinha nos fundos do Saloon, tentando evitar a qualquer custo os pensamentos relacionados a visita sobrenatural que receberá naquela noite. Porém, enquanto caminhava em direção a cozinha, por mais que tentasse sugestionar-se a pensar o contrário, a imagem sempre voltava a sua mente, como um pesadelo ruim do qual não conseguimos acordar. Por alguns segundos teve a nítida impressão de que o homem de olhos brancos ainda o seguia. O contorno dos seus olhos eram duas órbitas profundas, cadavéricas, e seus cabelos sujos de lama caiam em grotescos cachos por sobre seus ombros largos, desproporcionais. A pele do rosto estava ligeiramente repuxada para trás, como o resultado de uma operação plástica mal sucedida, e em um ponto ou outro da face, pequenas, mas incomodas bolhas de pus se formavam. E seus braços… Meu Deus! Meu bom Homem-Jesus… Seus braços eram excessivamente longos e magros, e devido a curvatura exagerada do corpo quase chegavam a tocar o chão. Eddie sentiu calafrios ao pensar naquilo, e pela segunda vez em uma só noite, fez o sinal da cruz e pediu auxilio ao Homem-Jesus, esquecendo-se do fato de que alguns supersticiosos de Briscow achavam que a necessidade de fazer um sinal contra mal olhado duas vezes em uma só noite era sinal de que algo muito ruim estava prestes a acontecer.

– Talvez tenha sido só um pesadelo – Pensou consigo mesmo, sem fazer sequer o mínimo esforço para abandonar tal idéia. Consciente ou inconscientemente. – Ié… Foi só isso… Nóis teve um pesadelo Tonny…

Eddie mal teve tempo para concluir seus pensamentos, já que quando o fazia ouviu três fortes batidas vindo de fora, da porta dos fundos. Seu coração (que geralmente já batia em ritmo acelerado) pareceu simplesmente querer fugir do peito, e quando se deu conta o copo já despencara de sua mão, caindo e se quebrando em inúmeros pedaços de vidro afiado.

– Quem é? – Perguntou, procurando não demonstrar no tom de voz o medo irracional que começava a sentir. Em resposta obteve apenas o breve silêncio noturno.

– Quem é? – Repetiu, ainda sem resposta.

Eddie caminhou devagar, procurando não acordar o homem que pagava seu mirrado salário no fim do mês (ou pelo menos até quando eles conseguissem manter o sistema estabelecido para a contagem dos dias em ordem) até a porta. Não se arriscou a abri-la de uma só vez.

– Quem tá ai? Forasteiro… Fale quem é, pelo amor que ocê deve ter ao bom Homem-Jesus – Pediu Eddie, inclinando-se ligeiramente para observar pelo buraco da fechadura. Um longo minuto se passou, até que finalmente veio uma resposta do outro lado da porta.

– Sou um viajante – Disse o dono da voz. Um relâmpago varou o céu, chocando-se contra o solo no exato momento em que o homem terminou a frase, como se quisesse pontua-lá. – Venho em paz.

– Como que nóis pode sabê que ocê vem em paz de verdade?

– Acredite garoto… – Disse o dono da voz misteriosa do outro lado da porta – Sou só um forasteiro. Caminhei por longos dias até chegar aqui. E a única coisa que peço é um pouco de comida, abrigo e água… Você não negaria isso a um homem velho e cansado, não é?

As palavras soaram familiares para Eddie, e talvez seu subconsciente se encontrasse martelando freneticamente, impulsionando-o a fazer o contrário. Mas o ímpeto de fazê-lo, de abrir a porta de madeira e acolher o estranho em sua casa, era maior… Infinitivamente maior… Uma estranha, assustadora força impelia-o até aquilo.

– Eddie… Com quem você tá conversando? – Perguntou a voz de Bob, vinda do outro quarto onde ele acabara de acordar. Se soubesse da gravidade da situação talvez ainda tentasse impedir o garoto de fazer o que fazia. Mas já era tarde. Tarde demais…

– Entre estranho. – Sussurrou Eddie hipnoticamente, enquanto sua mão calejada girava a maçaneta da porta.

FIM

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3 Responses

  1. Os olhos costurados nas mãos me fez lembrar de “O Labirinto do Fauno”. Já assistiu esse filme? Edi, você escreve muito bem! Estou rodeado de amigos escritores, que bom!

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