Stephen King é um escritor muito prolixo. Como resultado, para dar contas das muitas histórias que sondam sua mente incrivelmente imaginativa, ele ambienta estas histórias em universos que muitas vezes são reais e outras vezes fictícios. Esta nova série de posts pretende ir um pouco mais a fundo neste assunto, e abordar especificamente as cidades onde se passam muitas histórias do autor, sejam elas reais ou não. Para começarmos, escolhi Jerusalem´s Lot, por tratar-se (se levarmos em consideração a ordem cronológica dos fatos) de uma das primeiras cidades abordadas por ele em seus contos/romances. No decorrer do texto poderão ser encontrados spoilers relacionados às principais obras que fazem menção à cidade, o conto “Jerusalem´s Lot” do livro “Sombras da Noite” e o romance “Salem”, portanto se você não leu estes livros e acha que alguns pequenos spoilers podem ser muito ofensivos, recomendo que pare a leitura por aqui. Se você já leu ou não se importa com isso, creio que o post pode ser bastante enriquecedor. No mais, espero que gostem e tenham uma boa leitura.
Jerusalem´s Lot (também conhecida como Salem´s Lot ou apenas Lot) é uma cidade fictícia que faz parte da topografia do Maine de Stephen King. A cidade serviu de cenário para alguns contos e romances e apareceu pela primeira vez no livro “Salem´s Lot” (anteriormente conhecido como “A Hora do Vampiro” e posteriormente como “Salem” no Brasil). Se levarmos em consideração a ordem cronológica dos fatos, sua primeira aparição no universo de Stephen King se deu no conto “Jerusalem´s Lot” (no qual a história se passa em 1850), lançado em 1978, quando a cidade ainda tinha este nome, antes de voltar a ser povoada e passar a ser conhecida como Salem´s Lot ou Lot.
Localização: A cidade está localizada no Condado de Cumberland, entre as cidades de Falmouth, Windham e Cumberland, perto da parte sul do estado, cerca de 20 milhas ao norte de Porland. Lot faz parte da trindade fictícia criada por Stephen King, composta por Jerusalem´s Lot, Castle Rock e Derry, onde se passam muitas de suas mais conhecidas histórias. São cidades que, em geral, carregam uma aura de mistério e um “clima” (psicologicamente) pesado, onde aconteceram muitas tragédias.
King explicou em “Dança Macabra” que Jerusalem´s Lot foi, em grande parte, inspirada pela cidade de Durham, Maine, em especial pela área em que residiam jovens conhecidos localmente como “Metodistas Corners”. A Mansão Marsten, do romance original, foi baseada na casa vazia dos Corners, que o próprio Steve e seus amigos haviam explorado na infância.
Além do romance “Salem”, os contos “Jerusalem´s Lot” (do livro “Sombras da Noite”) e “A Saideira” (“Sombras da Noite”) também se passam em Lot. Há referências à cidade ainda em várias de suas obras mais conhecidas, como; “O Iluminado”, “Zona Morta”, “O Corpo” (conto do livro “as quatro estações”), “O Cemitério”, “Eclipse Total”, “Apanhador de Sonhos”, “Dr. Sono”, “Revival” e os três últimos livros da série “A Torre Negra”, “Lobos de Calla”, “Canção de Susannah” e “A Torre Negra”.
História: Quando Jerusalem´s Lot foi oficialmente incorporada como município, em 1765, o Maine ainda fazia parte da Colônia da Baia de Massachusetts. A cidade recebeu seu nome graças a um mito relacionado a um dos primeiros moradores, Charles Belknap Tanner. Charles criava porcos e um deles se chamava Jerusalém. Certo dia, Jerusalém escapou do curral e foi parar nos limites de uma floresta próxima, e quando Tanner o pegou de volta ele estava agressivo e selvagem. Tanner passou a alertar as crianças que invadiam sua propriedade de que elas deveriam se manter afastadas do “pedaço de lote de Jerusalem” (“Jerusalem’s wood lot” no original). Eventualmente a frase acabou sendo incorporada como o nome da cidade.
Apesar de ter sido incorporada oficialmente apenas em 1765, a cidade foi originalmente fundada em 1710 por um pregador chamado James Boon, líder de um grupo dissidente de colonos puritanos, originários do sul do Maine. O culto tornou-se conhecido na região por seu ligamento com a bruxaria e pelas práticas sexuais, tidas pelos moradores locais como imorais, onde os participantes eram adeptos, inclusive, da endogamia (sistema onde os acasalamentos se dão entre os parentes). James era o tipo de líder religioso excêntrico, que vivia cercado por mulheres e envolto em mistério.
Em 1782 os irmãos Robert e Philip Boone construíram a casa chamada ChapelWaite, em Preacher´s Corner, um vilarejo próximo a Jerusalem´s lot, fundado em 1741. Os irmãos eram descendentes de James Boon, o fundador da seita, mas não estavam cientes disso, apesar do sobrenome deixar isso bastante evidente.
Um dos irmãos, Philip, acaba se envolvendo diretamente com a seita e realiza alguns trabalhos para James, entre eles o de conseguir um exemplar do livro misterioso chamado “De Vermis Mysteriis” (“O mistério do verme” em tradução livre). O envolvimento de Philip com a seita causou desentendimentos entre ele e seu irmão Robert (uma desavença que duraria por gerações), que não concordava com a participação do irmão e via James como um líder religioso inveterado que manipulara seu irmão. Em 1789, James e seus seguidores desaparecem misteriosamente, pouco tempo depois de Philip ter conseguido o livro.
Em 1850 Charles Boone (neto de Robert Boone) e seu servo Calvin McCain, chegam em Chapelwaite, a casa ancestral negligenciada pelo falecido primo distante de Charles, Stephen, descendente direto de Philip e Robert. Em meio às suas explorações, eles encontram um diário onde é narrada a história de Jerusalem´s Lot e da misteriosa seita de James.
Em uma data desconhecida, em algum momento após a exploração de Boone e McCann, narradas no conto “Jerusalem´s Lot”, as pessoas começaram a habitar novamente a cidade, que teve um representante, Elias Jointner, nomeado para a Câmara dos Deputados em 1896, como narrado no romance “Salem”. Jerusalem´s Lot acabou, aos poucos, se tornando uma espécie de “lar” para coisas estranhas e assustadoras, apesar das histórias antigas terem acabado virando lendas na boca dos moradores locais.
Curiosidades:
O conto “Jerusalem´s Lot”, onde conhecemos um pouco mais sobre a misteriosa cidade, funciona basicamente como uma prévia do romance “Salem´s Lot” (“Salem” no Brasil) e a história é narrada em forma de epístolas, seguindo os moldes de outra história bastante conhecida, “Drácula” de Bram Stoker. O próprio Stephen King admitiu que o romance “Salem´s Lot” surgiu com a ideia de como seria se o famoso Conde Drácula reaparecesse nos dias atuais. Entretanto, esteticamente falando, apesar de ter sido inspirado por e ainda guardar semelhanças com a obra de Stoker, há claras referências ao universo de outro famoso autor de histórias de terror, no qual Stephen King se inspirou e do qual era leitor fervoroso; Howard Phillips Lovecraft.
- Além da própria ambientação de Lot ser bastante semelhante às cidades narradas por Lovecraft em seus diversos contos, o nome de um dos personagens é Yog-Sothoth. No universo de Lovecraft Yog-Sothoth é uma entidade cósmica de inigualável poder, um dos chamados “Antigos”, mencionado pela primeira vez no conto “O caso de Dexter Ward”.
- Uma das coisas que mais incomoda Charles em Chapelwaite são os barulhos que eles ouvem durante a noite, que eles acreditavam ser de ratos andando nas paredes. Um dos contos mais conhecidos de Lovecraft se chama “The rats in the walls” (“Os ratos nas paredes”, em tradução livre).
- No conto há ainda a menção a um grimório (livro que contém ensinamentos tidos como mágicos ou sobrenaturais) chamado “De Vermis Mysteriis”, nos mesmos moldes do famoso livro criado por Lovecraft, o “Necronomicon”. O livro fictício foi criado pelo prolifico escritor norte-americano de histórias de horror e ficção cientifica Robert Bloch (autor do livro “Psicose”, que deu origem ao filme homônimo de Hitchcock) e posteriormente integrado aos chamados “Mitos de Cthulhu”, uma série de histórias que ajudaram a enriquecer o universo de Lovecraft. Lovecraft foi uma espécie de “mentor” de Bloch, que foi um dos primeiros a fazer parte do “Circulo de Lovecraft”, um grupo de autores que tinha por premissa expandir o universo criado por Lovecraft, após a sua morte.
- Outra referência sútil; No final do conto de King é revelado que o avô de Charles, Robert Boone, teve dois filhos bastardos e que um deles vive em Rhode Island. Lovecraft nasceu e morreu em Providence, uma cidade deste mesmo estado, além de ter ambientado muitas de suas histórias lá.
Professor de Língua Portuguesa e Literatura, graduado em Letras pela UEG (Universidade Estadual de Goiás), pós-graduado em arte/educação pela UFG, viciado em literatura de terror/suspense, amante incondicional de séries e Hq´s e fã de carteirinha do mestre Stephen King desde 1996.
6 Responses
Muito boa a matéria, muito interessante!
Obs.: Salem´s Lot também é citado em Celular.
Valeu pela dica Vitor. Vou atualizar o post assim que possível. Abraço!
Excelente texto! Eu sou muito fã de Love craft, assim com do King, e acabei por ler a Hora do Vampiro antes do Conto Jerusalem´s Lot. Quamdo vi o nome do conto no Sombras da Noite já me empolguei, e notei a semelhança com os textos de Love Craft e Robert E. Howard achei fantástico o conto e essas referências enrriqueceram muito a história e o universo do mestre King.
Com certeza Leandro. A Hora do Vampiro é um clássico. Abraço!
Oi Edilton, acabei de ler esse conto no Sombras da Noite e gostaria de fazer uma correção, o nome do pregador maluco é James Boon e não Boone. Inclusive, no proprio conto, Charles Boone diz nunca ter percebido a semelhança de seus sobrenomes.
Novamente, ótima matéria!
Obrigado pela correção Vitor. Já corrigi na matéria 😀 Abração e obrigado pela visita!